Cortesia de wikipedia
O Besouro
«Contrastava com as outras meninas que, apesar de serem da sua idade, tinham os bracitos nus, os cabelos enfeitados com rosas e a cinta apanhada por uma faixa de carneira macia, que lhes modelava já as formas; bordada a ponto fino. Não percebeu o que o infante lhe queria e em vez de chorar, que era sinal de piedade e despertava carinho, fitou o infante com um ar de enfado, que nada tinha de estudado e que era antes a expressão duma quase idiotia. Chorar é, nessas idades, como aliás noutras, o que será anos mais tarde um brilho codificado dos olhos. O primeiro fazia transbordar as primeiras águas, enquanto que o segundo ateava as primeiras brasas. Mas ambos desempenham um papel necessário ao corpo e ao tempo natural dos esposos.
Branca afastou-se nos seus passinhos cujos e medidos com os braços escondidos na pelica escura, como se passeasse entre o tojo num dia muito escuro de Novembro. Pedro procurou no claustro a mãe e disse-lhe:
- Senhora, vossa filha não leva estrelas de Maio, nem traz no cinto a tez das flores.
Ao que a mãe lhe respondeu:
-Há orfandades que se lêem nos olhos. Seu pai desamparou-se da vida numa idade em que mais se floresce do que se caduca. Cravou-se-lhe no rosto uma tristeza mais sentida do que sabida e que é hoje, nesta menina, mais do natural do que do adquirido. Esperai, e com ela ireis ainda, se assim aprouver ao altíssimo, noutro ano, às espigas de Abril.
Desabaram nesse dia em Lisboa chuvadas repentinas duma água fria, que mais pressagiava aquelas festas do mês de Novembro, em que se bebe um vinho claro e fraco, acompanhado de castanhas ainda com pele em brasa, do que propriamente as festas de Maio em que os santos se toucam de flores e os segadores trazem para as eiras os primeiros calores fortes do sol. Nesse instante, em Pedro, surgiu, talvez pela primeira vez, o homem na criança, que ensombrada emudeceu Pedro, na tempestade das águas, pronunciava já uma outra linguagem, como o tempo uma outra alvorada. Hora de metamorfose, em que toda a radícula mais chã se poderia espantar das suas asas alvoroçadas.
Cortesia de costapinheiro
Constança Manuel quando saiu de Touro levava nos olhos pisados de chorar o seu primeiro desgosto de mulher. Tinha pouco mais de doze anos e nesse tempo o amor despertava com um viço carnudo na sua idade mais natural. Constança tinha, por essa altura, um perfil de senhora, erecto, com uma fronte alta e atirada para cima. Os cabelos caíam-lhe até à cintura e tinha já, nessa idade, a dignidade duma mulher do Norte, que pouco deve à natural melancolia da mulher do Sul. Havia na sua dignidade a secura das coisas que estão erguidas, ou seja, das coisas que se sentem, a si mesmas, talhadas para um destino superior.
O castelhano guarda em geral no seu modo de ser algo desta arrogância centrípeta e a sua chama, sempre acesa, é mais um tipo de orgulho pessoal que propriamente um fogo sagrado que, em sincera adoração, se pretenda partilhar.
Seu pai levou-a para Penafiel, onde a deixou alguns dias entregue às suas roupas e aos seus afazeres de mulher. Mudou-se depois com ela para a corte de Aragão, que era uma das cortes mais brilhantes da época. Jaime II, filho de Pedro, o ‘Grande’, era irmão de Isabel de Portugal e tinha no rosto a tez catalã, que está sempre entre duas fronteiras:
- a do mar e das montanhas.
A Catalunha tinha sido desde sempre o coração de Aragão e forneceu, durante a idade de ouro desse país, os melhores homens a essa coroa. Esses homens dominaram praticamente o Mediterrâneo inteiro, conquistaram as Baleares, a Sicília, a Sardenha, uma parte da costa da Tunísia, entraram pela Itália e não se limitaram, por mar, a chegar a Corfu ou à Cefalónica. Conquistaram a Grécia e todo aquele extenso território que era antigamente a Esclavónia e que é hoje a Jugoslávia e a Albânia. Para além disso, essa surpreendente expansão militar, em que se distinguiram homens como Rogério de Flor ou Rogério de Lauria, foi acompanhada com uma expansão da língua catalã que se tomou a língua comercial de todo o Mediterrâneo, substituindo assim, depois de muitos anos, e em condições idênticas, o grego e o latim.
Cortesia de wikipedia
Jaime ÍI morreu, contudo, em 1327, nos dias em que se devia encontrar com o seu cunhado Manuel, que já não o chegou a ver. Morreu depois de arvorar os goles da bandeira catalã em quase todo o Mediterrâneo e de, em 1323, ter cometido com os seus Almograves a última das grandes epopeias desta época:
- A conquista da Sardenha, constituindo assim o esboço dum império possível, que tinha como ponto de partida a expansão da própria língua.
Ainda hoje se diz que catalão é todo aquele que fala catalão. A expansão para sul da Península no século XIII e a rápida conquista de Valência, em 1238, levou o catalão praticamente até aos campos e às marinas de Múrcia, dando-lhe um desenvolvimento e uma expansão que o tornou na altura língua de cultura e de civilização. O homem catalão experimentou então formas de aculturação muito superiores àquelas que eram, na época, tentadas pelo homem de Castela e produziu uma cultura brilhante, que não se envergonhou de instituir o árabe como língua escolar e de promover o hebraico à dignidade de língua sacra, respeitando e integrando num todo a diversidade dos seus povos e das suas culturas.
Com a subida ao trono de Afonso IV de Aragão, João Manuel afasta-se de Saragoça e desce para Múrcia. Constança Manuel passeou então pela primeira vez por Albacete e entreteve-se com escravas árabes vindas de Alicante a aprender a bordar carneira, trabalho nítido e delicado. Eram mulheres ágeis, habilidosas, tipicamente peninsulares, muito doadas para a companhia e o doesto. Falavam sentadas no chão, com o estojo da costura entre as pernas, as mãos no regaço da saia, procurando criar, à sua volta, um ambiente de hilaridade, que às vezes se excedia. Acentuavam as palavras maliciosas, que às vezes traduziam em castelhano do catalão ou do árabe, quase ao ouvido de Constança Manuel.
Constança, apesar de emocionalmente desenraizada, achava nessa proximidade física não tanto um substituto do seu amor, mas um escoar fácil do tempo. Já em Múrcia ia olhar das janelas do palácio o lugar que fica fronteiro à cidade e que, envolto numa vegetação espessa e verde, apelidavam de Fonte dos Álamos». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990, edição nº 103310.
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