sábado, 24 de dezembro de 2011

O Humanismo de António Ferreira. T. F. Earle. Século XVI: «Nos dois livros de cartas Ferreira voltou ao exemplo de Horácio, e no pequeno grupo dos epitáfios ao de Ausónio, poeta romano da época tardia. A fonte principal de Castro são as tragédias de Séneca»

Cortesia de cokalipedia

«É impossível pensar na obra de António Ferreira sem tomar o humanismo em consideração. Graças, provavelmente, à protecção da família poderosa dos Lencastre, o poeta, que nasceu em Lisboa em 1528, teve a sorte de fazer os seus estudos em Coimbra durante o período de maior esplendor da universidade portuguesa renascentista. Muito mais que qualquer outro poeta importante da época, Ferreira foi o produto do novo programa de estudos humanísticos decretado por D. João III, com ênfase na aquisição de um bom conhecimento da literatura greco-romana e dos valores estéticos e espirituais associados à civilização clássica. [...]
Ferreira entrou na Universidade talvez em 1543, com a idade de 15 anos apenas, e saiu depois de se ter doutorado em 14 de Julho de 1555. Foi o período mais feliz da sua vida, a que nos anos a seguir se referia sempre com saudade. Numa carta de 1557 ou 1558, escrita de Lisboa ao amigo universitário Manuel de Sampaio, que tinha em Coimbra, revela esse sentimento desde o início:

Das brandas Musas dessa doce terra
pera sempre apartado, choro, e gemo,
em vãos cuidados posto, em dura guerra.
[...]

O renascimento da literatura clássica
[...]. Na Universidade Ferreira aprendeu o latim e nessa língua leu a literatura romana e também a grega, que em meados do século XVI tinha sido em grande parte traduzida para latim. Ferreira tinha uma admiração sem limites pelos grandes mestres da literatura clássica, de forma que, para ele, Horácio, Virgílio, Séneca e poucos mais constituíam a totalidade da poesia lírica e dramática. [...] Ferreira também aceitou como clássicos vários escritores italianos, principalmente Petrarca, e alguns outros que viveram depois dele e que se exprimiam em latim, como Iacopo Sannazaro e Girolamo Angeriano. Fora deste âmbito greco-romano e italiano não havia literatura, porque Ferreira a concebia exclusivamente em termos livrescos. É notório, por exemplo, o seu desprezo pela literatura popular, que condena na carta a D. Simão da Silveira. Na sua opinião a literatura moderna, portuguesa, não podia ser mais que uma recriação da literatura antiga porque, na sua concepção altamente humanística, a Beleza era una e derivava de uma única fonte greco-romana. A tarefa que ele assumiu, com toda a solenidade, era a de recriar essa beleza para o Portugal de quinhentos.

Cortesia de eltripodedehelena

A esta recriação, comum a muitos autores humanísticos, dá-se normalmente o nome de imitação. Ferreira era, sem dúvida nenhuma, um poeta imitativo: todos os géneros literários que tentou existiam já, ou na época greco-romana ou na Itália de Petrarca, e quase não há poesia nos Poemas Lusitanos que não se reporte, por minimamente que seja, a uma fonte clássica. Assim, os sonetos de Ferreira derivam dos de Petrarca, e os epigramas das supostas odes do poeta grego Anacreonte ou do poeta novilatino Angeriano. As odes são todas horacianas, com a excepção de uma, inspirada num poema de Catulo. Não se associava a elegia, género mais fluído, com um único escritor clássico, mas algumas das de Ferreira baseiam-se nos ‘Anacreóntica’. Virgílio, inevitavelmente, é a divindade titular das éclogas, enquanto as duas longas poesias que as seguem nos ‘Poemas Lusitanos’, dedicados a Santa Comba dos Vales e ao casamento da Princesa D. Maria de Bragança com Alessandro Farnese, são, respectivamente, um ‘epyllion’ e um epitalâmio, ambos eles géneros muito bem conhecidos dos antigos.
Nos dois livros de cartas Ferreira voltou ao exemplo de Horácio, e no pequeno grupo dos epitáfios ao de Ausónio, poeta romano da época tardia. A fonte principal de Castro são as tragédias de Séneca.
[...]
Cortesia de historiadaarte

Contudo, o classicismo de Ferreira tinha limites bem marcados. Era humanista, mas um humanista cristão que nunca teria permitido que a filosofia pagã maculasse a sua pureza doutrinal. Ao contrário de Camões, e até do Sá de Miranda das éclogas ‘Fábula do Mondego e Encantamento’, não narra histórias derivadas da mitologia greco-romana, que muitas vezes rejeita como «fábulas vãs». Nas cartas ao irmão, Gracia Fróis Ferreira, e ao amigo universitário Diogo de Betancor falava até com um certo desprezo dos «escuros meios» com que os filósofos antigos tentavam penetrar a verdade religiosa sem terem a ajuda necessária da revelação cristã. E é sobretudo hostil à concepção clássica da fortuna que, segundo ele, os romanos consideravam erroneamente uma deusa poderosa.
Ferreira, como muitos outros da sua geração, estava fascinado pela astrologia e acreditava no poder das estrelas para influenciar os acontecimentos terrestres. Mas, como bom católico, sabia que a consciência humana é livre para escolher entre o bem e o mal. Esta ê a temática da ode a D. João de Lencastre, filho ilegítimo do Duque de Aveiro, a quem afirma que a «consciência pura» nada podia temer da fortuna, «falsa deosa..., falso poder, e falsa divindade». Idêntica mensagem é a da tragédia ‘Castro’, escrita, como a ode, enquanto estudava em Coimbra. Apesar de o Infante D. Pedro, por exemplo, falar muito no efeito determinante da fortuna, ele podia ter controlado os seus impulsos, como lhe disse repetidas vezes o seu Secretário. Mas, em vez disso, o Infante prefere deixar-se dominar pelos próprios desejos, como o pai D. Afonso IV e outros membros da família real, assim criando uma situação de conflito que nem a morte de Inês resolve, já que a ela se segue uma guerra civil. [...]». In T. F. Earle, O Humanismo de António Ferreira, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVI, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

Cortesia da FCG/JDACT