Cortesia de wikipedia
Um vulto dentro do nevoeiro
«Rude e profundo foi, portanto, o golpe da cimitarra, decepando pela base todo o esplendor e milenar resistência de Constantinopla. Mas cem vezes mais profundo, muito mais terrível pelas consequências, se deve hoje considerar o contra golpe que no Islão desferiu, do outro extremo da Europa, a nação portuguesa, ao pular à África e arrebatar-lhe a «chave do Mediterrâneo», Ceuta, e os colmilhos de praças adjacentes. No Levante foi posta em xeque a sobrevivência da Europa Cristã, com todo o seu recheio; ao poente, com o afundar da lâmina da política portuguesa na ilharga colossal do ‘monstro’ islâmico, não só se decidiu a garantia dessa mesma Europa, mas se deflagrou a explosão da energia e cultura ocidental, que foi transbordar pelos continentes, bloqueando inclusive, pela retaguarda, os mais recônditos redutos de Maomé. Em 1452, à véspera da queda de Constantinopla, o gume já atingia as artérias da Guiné.
A relevância da fulminante intervenção de Portugal não escapou a Gomes Eanes de Zurara, «pois do proveito que a terra rccebeo, o levante e o poente som bem clara testemunha… ca por certo nom se pode negar que a cidade de Cepta nom seja a chave de todo o mar Mediaterreno». No Estreito do Bósforo, a História pareceu simplesmente parar. Era a atonia. No oposto Estreito de Gibraltar, não somente se fechou a jaula, mas se romperam caminhos novos e não sonhados, por onde a Civilização retomasse a marcha.
Cortesia de wikipedia
Até aqui, a História do Mundo mal passara do prefácio, ou dum Génesis. Coube à nação Portuguesa escrever-lhe os primeiros capítulos do texto, com páginas de oceanos, vinhetas de arquipélagos iluminuras de continentes. Quem o planejou? Quem lhe preparou o índice? Quem lhe desenhou o esquema? Não esquecendo que se trata duma campanha, convenhamos que a estratégia era a de Deus. Mas a táctica delegou-a numa das mais altas cumeadas que jamais se ergueram entre os homens: o Infante Dom Henrique! Diante dele, é-nos bem difícil conter-nos dentro da serenidade objectiva. Quanto mais nos abeiramos deste homem-problema, tanto mais filigranadas maravilhas descobrimos; quanto mais dele nos afastamos, às recuadas, para lhe avaliarmos os contornos, ou lhe medirmos a envergadura, tanto mais agigantado se recorta nos ares o seu perfil de ciclope.
Quem foi, então, o príncipe D. Henrique? Será possível defini-lo? Completamente, duvidamos. Sabemos porém que, se a definição justa e precisa se nos torna embaraçosa, resta-nos, entre outros recursos, o da “enumeratio partium”. Só após o estudo e análise parcelada dos ângulos e pormenores é que poderemos tentar a síntese, a montagem do conjunto, com peças duma autenticidade irrefragável.
No caso do Infante afigura-se-nos inadiável retratarmos previamente o proscénio quatrocentista.
Por ora, o Príncipe ainda é um vulto dentro do nevoeiro!
Aos que estão habituados a considerar o cenário convencional duma corte quatrocentista, logo ocorre um desfile da intriga ou da torpeza, da ambição ou da mediocridade, do misticismo sombrio ou da virilidade destemperada, entre os reposteiros doirados e os coxins da madraçaria.
As histórias e os romances assim no-lo têm dito.
Contudo, a Casa Real de Avis, sem desdouro dos requintes fidalgos, era, nos alvores do século XV, algo de raro, pelo visto: nos lajedos tapizados dos salões cruzavam-se naturalmente santos e eruditos, pioneiros e cosmógrafos, veteranos de muita batalha e monges de muita vigília.
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Pelas arcadas do paço e as áleas do bosque deslizavam nobres moços de cilício colado aos rins e com visões de Galaaz estampadas na retina; infantes que liam Séneca para repouso da «mui nobre arte de cavalgar toda sela»; enamorados que trocavam cantigas ‘em linguagem’, para desfastio de torneios e caçadas…
O rei era um padrão de dignidade e robustez. Robustez física e robustez moral, aquinhoadas com a muita prática. «Eu acho que nenhüa virtude nom pode seer em perfeiçom, sem algum exercício», confidenciava ele a um seu filho muito querido, o terceiro varão do matrimónio real, D. Henrique ou Anrique.
Fino de maneiras, metódico e razoavelmente culto, D. João escrevera já, em vernáculo, os seus apontamentos, os Livros de Montaria, de Salmos e de Horas. Um exemplo de ufania do idioma português, para os castelhanistas literários de então. Pioneirismo nacionalista da nossa prosa estética, balbuciante embora, na pré-renascença.
Realista o pragmático a bem dos seus vassalos, não escondeu o gosto requintado e idealista, na escolha e traço desse plástico poema de pedra que é a Igreja da Batalha. No recesso do lar revelou-se o “pater-familias” modelo, quase sem confronto.
E que esposa ideal lhe destinou a Providência! Ela era a graça aformoseando a dignidade. Era a suavidade inteligente, que emoldurava a inteligência suave! (11)». In Silva de Azevedo, O Príncipe Sem Coroa, Pontifícia Universidade de S. Paulo, Bertrand Irmãos, Lisboa, 1963.
Cortesia de Bertrand Irmãos/JDACT