sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Diogo do Couto. Década Quarta da Ásia: «Felizmente Luís Vaz propõe ao rei Sebastião o livro da epopeia dos Portugueses, que anuncia que o jovem rei, maravilha fatal da nossa idade, não terá que lamentar, como Alexandre lamentou, não ter, como teve Aquiles, um Homero capaz e desejoso de cantá-lo»

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Introdução à leitura da Década Quarta de Diogo do Couto
«Assim, pois, são os homens, incluídos os Portugueses, pelo menos ao tempo, a avaliar por esta anedota do escudo de D. Afonso Henriques. Diogo do Couto:
  • «nenhuma coisa puxa mais por um varão de honra, que estes desejos de glória e fama, por que tantos obraram; e fizeram tantas e tão altas maravilhas, que pareciam passar os termos e limites da natureza humana».
Em suma, “mais do que prometia a força humana” (‘Lusíadas’, I-1). «Passar os termos e limites» (Couto) é próprio, aliás, dos Portugueses. Bem dissera o Adamastor à «gente ousada» que ia com o Gama:
  • «pois os vedados términos quebrantas (V-41)».
Términos do mar, do mundo conhecido, não das «forças humanas», certamente... Mas o que importa é ultrapassar. Ultrapassar-se.
Sem embargo da prontidão de D. Afonso Henriques em pintar o seu escudo, dir-se-ia que os Portugueses, desejosos de honra, capazes de maravilhas, não se importam com o canto (Camões) ou a crónica (Couto). Aos capitães portugueses, não se lhes dá de poemas, de letras, de crónicas, de ciência...

Ter-se-ia passado assim com Alexandre Magno? De maneira nenhuma. Todos sabem que Alexandre tinha sempre Homero à cabeceira.

Camões:
Lia Alexandre a Homero de maneira,
Que sempre se lhe sabe à cabeceira.
(V-96)

Os Portugueses nem se importam com as Décadas de Barros. Grande vergonha, porque hoje em dia todos os grandes (estrangeiros, claro) as trazem “à cabeceira”. Como quem? Como Alexandre, que sempre trazia à cabeceira a “Ilíada” de Homero. Citamos a epístola dedicatória:
  • «E foram tão estimadas [as Décadas de Barros] dele [Guilherme Gonzaga, terceiro duque de Mântua], e o são hoje de todos os grandes, “que as trazem às cabeceiras das camas, como Alexandre trazia a ‘Ilíada’ de Homero»

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Deixemos Barros, por enquanto, e voltemos a Camões:

Enfim, não houve forte capitão,
Que não fosse também douto e ciente,
Da lácia, grega, ou bárbara nação,
Senão da portuguesa tão somente...

Di-lo Camões, não sem vergonha (V-97). E Couto, na epístola dedicatória? Pinturas e esculturas não falavam. Os Atenienses passaram às escrituras. Os Romanos após eles. Enfim, “todas as mais nações do mundo” (lácia, grega ou bárbara nação). Todas excepto uma: a portuguesa tão somente. Na epístola:
  • «Esta glória das estátuas e dos escudos brancos passaram depois os Atenienses às escrituras por verem que as imagens e pinturas eram mudas e não podiam recitar seus feitos. Daqui se estenderam aos Romanos e a todas as mais nações do mundo, tão desejosas todas de uma perpétua fama, que lhe não fica cousa que não seja logo por muitos e vários modos escrita. “Só a esta nossa nação portuguesa faltou esta glória…”
Felizmente Luís Vaz propõe ao rei Sebastião o livro da epopeia dos Portugueses, que anuncia que o jovem rei, maravilha fatal da nossa idade, não terá que lamentar, como Alexandre lamentou, não ter, como teve Aquiles, um Homero capaz e desejoso de cantá-lo. Digne-se o jovem rei atentar nesse livro, que lhe é dedicado:

Os olhos da real benignidade
Ponde no chão. Vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valorosos,
Em versos divulgado numerosos.
(I-9)

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Diogo do Couto a Filipe II (ai de nós!): «este volume [...] ofereço humildemente aos pés de Vossa Majestade. E só com pordes os olhos nele, haverei por bem empregadas todas as despesas e trabalhos»... que verá Vossa Majestade em tal volume?

Camões
Vereis amor da pátria não movido
De prémio vil...
(I-10)

Olhai que ledos vão por várias vias
Quais rompentes leões e bravos touros...
(X-147)

Couto
  • Aí verá Vossa Magestade as muito grandes e admiráveis façanhas, feitas por aqueles antigos governadores [...] verá Vossa Magestade, nos raros e espantosos feitos que estes seus vassalos têm feito e cada dia fazem...
Francamente! Tais vassalos os Portugueses, pode-se perguntar: não será o mesmo, ou melhor, ser rei dos portugueses, que senhor do mundo?

Camões
E julgareis qual é mais excelente
Se ser do mundo rei, se de tal gente.
(I.10)

Couto
  • com quanta mais razão pode dizer por eles [os Portugueses], o que dizia Pirro, que, se tivera os Romanos por soldados, que facilmente fora senhor do Mundo, ou eles, se o tiveram a ele por capitão.
Não é bem o mesmo decerto. Mas é uma maneira afim de preparar o incitamento onde se quer chegar. Já que são assim os Portugueses, força!

Camões
Tomai as rédeas vós do reino vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
Comecem a sentir o peso grosso
- Que pelo mundo todo faça espanto -
De exércitos e feitos singulares,
De África as terras e do Oriente os mares.
(I-15)

Couto
  • Mande-os, porque eles lhe levarão suas colunas mais adiante, e pô-las-ão onde Semíramis e Alexandre não chegaram!
Felizmente, ao «invictíssimo» Filipe II «não falta a humanidade e clemência de Filipo para com os seus», diz Couto. E era o que desejava Camões que não faltasse ao rei Sebastião:

Favorecei-o logo e alegrai-os
Com a presença e leda humanidade;
De rigorosas leis desalizvai-os...
(X-149)

Favorecidos pela humanidade e clemência do rei, os seus vassalos portugueses - afiança Couto - «romperão com um ânimo seguro por todos os perigos da vida»...

Romperão. Quais «rompentes leões e bravos touros», tinha escrito Camões (X-147). Com que ânimo? Ledos, diz Camões. Com um ânimo seguro, diz Couto. «Dando os corpos [...] a perigos incógnitos do mundo», diz Camões. A todos os perigos da vida, generaliza Couto. Romperão com um ânimo seguro por todos os perigos da vida (sic)». In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Coimbra Martins, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.


Cortesia da Fundação Oriente/JDACT