Cortesia de domquixote
A Economia dos Descobrimentos Henriquinos, 1962
«Sob a égide de três nomes inigualados tem de colocar-se qualquer obra, seja de pesquisa ou de divulgação, que se consagre ao período henriquino:
- Jaime Cortesão, Duarte Leite, Veiga Simões.
Bem diferentes entre si, sem dúvida. O primeiro rasgou à história dos descobrimentos os horizontes mundiais, desentorpeceu-a do comentário literal dos textos graças a ousadas hipóteses a que o esplendor da forma conferia tanta sedução; articulou-a solidamente à geografia humana, procurou esclarecê-la pelas maneiras de sentir e de pensar. No pólo oposto, o professor de Mecânica Celeste trouxe-lhe o rigor, a exigência crítica incorruptível do espírito matemático, dando-nos com o seu estudo da “Crónica dos feitos de Guiné” o modelo, infelizmente não seguido, da análise das fontes e da elucidação inabalavelmente firmada dos factos de descobrimento; e por esse aprofundamento erudito rasgou o véu que nos velava múltiplas facetas da época. O diplomata que conviveu com Sombart estava melhor do que ninguém a par dos modernos caminhos da investigação histórico-sociológica e psicológica e da realidade da vida económico-social e político-cultural de Quatrocentos não só em Portugal como em toda a Península e na Europa inteira; para a compreensão profunda desses tempos de ocaso e alvorada as suas páginas na “História da expansão portuguesa” continuam a ser capitais. Mas sabe o autor destas linhas, porque repetidas vezes lho disse Veiga Simões, que este tinha concluídas a “História do Infante D. Henrique” e a “História do Infante D. Pedro”, além do primeiro tomo, que ia do século III ao VIII, de uma “História social da Península” destinada a iluminar e servir de alicerce àquelas duas. Irritante mistério plana sobre o destino desses trabalhos, cuja não publicação prejudica irremediavelmente o estudo do Portugal henriquino.
Pretendemos tão só, no presente tentame de introduzir um vasto público na intimidade de uma época e de uma obra decisivas na evolução nacional e na génese do mundo moderno, mostrar as traves-mestras de toda uma sucessão de situações económicas em que uma e outra se processaram e consubstanciaram. Daí o dispensarmo-nos de focar o retrato do Infante, daí o convergir de faróis para as estruturas e conjunturas globais. E que, se Zurara considerava, aristotelicamente, que se conhece a obra quando se conhece o obreiro dela, hoje exigências de outra complexidade orientam a posição dos problemas e a explicação em história. Colocada como a colocou o cronista de Quatrocentos, e na sua esteira tantos escritores recentes, a questão restringiu-se duas vezes:
- em primeiro lugar, passou-se de um grande movimento histórico na sua polifacetada causalidade e na variedade do seu devir, às razões que moveram os dirigentes e nortearam os seus feitos;
- em segundo lugar, concentraram-se essas razões e esses feitos numa única personagem.
Ora a sociedade tem a sua estrutura própria, as transformações sociais encadeiam-se objectivamente umas às outras, a razão de ser de uma transformação social reside noutra transformação social.
Complexo das ilhas e do Noroeste africano, século XV
Cortesia de domquixote
Distinguia Henri Berr três ordens interferentes no devir da humanidade:
- a contingência, a necessidade e a lógica.
Esta última é o encadeamento interno da sucessão de ideias e sistemas de ideias, numa relativa independência quanto aos que as criam e pensam (é, na arte, a vida das formas de que falava Focillon; são, na antropologia, as estruturas de que fala Lévi-Strauss). É a contingência o domínio do individual - do que é singular, único (e que Oliveira Martins considerava, com muita profundidade, o encontro de diferentes ordens necessárias), daquilo de que não podemos dar conta estatisticamente. A necessidade reside na conexão recíproca ou nas correlações estatísticas que formam a estrutura e no encadeamento causal ou probabilístico no tempo das conjunturas e das estruturas.
De um outro ângulo, aparentemente pelo menos, distingue Fernand Braudel três níveis em profundidade, cada qual com seu ritmo próprio:
- o estrato dos eventos, de tudo o que acontece, ou seja, das acções individuais ou de massas, localizadas e datadas, num aparentemente caótico fogo-de-artifício em cada momento, num suceder trepidante, extremamente rápido;
- a camada média, da conjuntura, em que o suceder é menos ofegante e mais necessário, ritmando-se ao sabor dos anos, dos lustros, das décadas, e não dos dias e das horas;
- o estrato profundo, em que os outros assentam, do tempo extremamente lento, em que quase parece não haver mudança mas que na realidade muda com os séculos, é a vida ao rés do solo, nas suas necessidades bem do âmago.
Complexo da Europa Atlântica, século XV
Cortesia de domquixote
Não interessa discutir, procurar corrigir e melhorar ou substituir tais pontos de vista, certamente fecundos, trazidos a este átrio tão só a fim de chamar a atenção para a indispensável posição dos problemas noutro pé, evitando ingenuidades e simplismos. Todavia convém sublinhar que, uma vez estabelecidas as conexões entre transformações sociais, não está resolvido nem sequer posto o problema da conduta e da compreensão das grandes personagens ou dos anónimos comparsas naquilo que têm de inconfundível. A acção daquelas como destes na marcha da humanidade não pode evidentemente apagar-se, conquanto circunscrita, a das primeiras, pela sua formação social-cultural e pela acção dos papéis secundários e das grandes massas sem nome. A personagem, de primeiro plano ou obscura, é a realidade mais difícil de surpreender, menos acessível à pesquisa, conquanto, desde que Lucien Febvre indicou as directrizes e rasgou os horizontes, a psicologia histórica tenha caminhado cada vez menos vacilante. Duas ou três observações, ao correr da pena:
- as razões conscientemente alegadas da conduta de uma personagem não são o conjunto de factores de que essa conduta depende, em geral pouco mais fazem do que reflectir o ambiente social-cultural, os paradigmas de uma época e grupo;
- as fontes antigas transmitem-nos quase sempre mais uma tipologia ideal do que uma individualidade no seu efectivo facetamento múltiplo, não nos dão quase nunca elementos para reconstituir de maneira científica o seu carácter.
Isto dito, está o leitor prevenido para não confundir, como infelizmente com frequência se confunde, causas económicas e ordem económica com cobiça, avidez de ganho, mira no proveito.
Demonstrar que não só D. Henrique como até todos os dirigentes da expansão nunca se teriam maculado pelo mais ténue apetite material, antes sempre se teriam dedicado abnegadamente e no mais puro desinteresse, nada tem que ver com o papel do económico nessa expansão». In Vitorino Magalhães Godinho, A Expansão Quatrocentista Portuguesa, 1962, Publicações Dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-20-3510-1
Cortesia de Dom Quixote/JDACT