Cortesia de geneal
Ronda Primeira
«Só eu a senti ali especada a amolar a rasoira. Buliu-se-me o ser em estranho arrepio e renovada agitação, voaram folhas amarelecidas em redor das árvores, poeiras dos caminhos, bailaram por instantes e logo caíam mortas no chão. Pelos terreiros e eiras, pelos soutos e pátios dos paços galinhas esvoaçavam, as penas erriçadas, a fugir súbito loucas em espavorido cacarejo. Jesus! Santo Deus! - gritam as donas. Estugam os velhos o trôpego em direcção a casa...
Casara o novo rei João e ia tendo filhos e a infatigável Ceifeira os ia segando. Nove! E nenhum sobreviveu ao pai! De revoada arrebata um mais outro, mais outra e mais outra, ainda crianças... E olha ali aqueles menininhos! Vamos a eles!.. E monda um quinto e monda um sexto e monda um sétimo... e logo se compraz em filar a tenra mulher do príncipe Felipe de España, falecida com dezoito anos ao nascer-lhe um filho de infeliz destino. Não se livra o pai das vozes que por aí correm de haver mandado matar o filho iconoclasta… Corta em seguida o fio da existência ao bastardo arcebispo de Braga… Anda cá tu agora, Joãozinho, herdeiro do trono com a morte de tanto irmão.
Dor de alma! Dezassete anos, quase imberbe príncipe! Dobrar de sinos a dois de Janeiro. O reino estremece com a tua partida e o espectro de, por morte do rei teu pai, vir a perigar a sucessão da coroa. Mas tu eras casado com a filha de Carlos quinto, Joana, que anda de esperanças. Tem paciência, meu povinho! São só dezoito dias de desesperança e logo... estás a ouvir como repicam os sinos de alegria pelo nascimento do príncipe Sebastião?... Vai-te embora, papão negro, de cima desse telhado, deixa dormir o menino um soninho descansado...
A hora soou de levar o príncipe Luís, duque de Beja, condestável do reino, prior do Crato, cavaleiro da ordem de São João de Jerusalém, cultor das artes liberais, pingue paveia do meu trigal. Tão formoso! De meã estatura, loiro, bom parecer, bem-disposto e prazenteiro com todos, até com o sapateiro Simões Gomes que gosta de deitar as sinas dos futuros, galante com as damas e no vestir... Tanto projecto de matrimónio real falhado! Mas consta que se casou a furto com a formosa e jovem Violante Gomes. Paixão ardente. Ela, porém, honesta, só consentiu amores após casamento.
Cortesia de wikipedia
- Sois mancebo viçoso e florescente, meu senhor - passeavam os dois namorados, à tardinha, pelo recolher das aves ao gasalhado da folhagem. - Fico muito honrada com a vossa afeição, mas...
- Mas! - interrompia, desolado, o infante Dom Luís a sua amada.
- ... mas esperam-vos, eu sei, toda a gente fala, casamentos com princesas, com infantas. Quem sou eu para me entremeter nos assuntos da vontade de el-rei nosso senhor?
- Minha princesa sois vós, Violante. Outra não quero... Não vos quebram o coração os extremos públicos em que se esforça meu engenho por mostrar-vos quanto vos amo? Sois de tal jeito insensível?
Deixais-me para aqui como as ondas a bater em penedo na serra da Arrábida? Bosque, montanha e mar e rio, aves e alimárias, céu e terra não são tão insensíveis como vós...
- Donzela virtuosa e honesta minha mãe me ensina não deve dar ouvidos a galanteios de príncipes. Insensível não sou e com ternura meu coração recebe as vossas mostras de afecto, justas galantes, peregrinas invenções, músicas, motes e cantigas em meu louvor, que não mereço...
- Mereceis isso e muito mais.
- ... discrição e graça que mais vos eleva a meus olhos. Crede-me.
Em meu coração não se acoitam pensamento e intenção desonestos...
Casaríeis comigo?
[…]
- Não sei. Tenho medo...
- El-rei meu irmão de nada saberá... ou só saberá quando a nossa união se tornar facto consumado…
- Tenho medo. Não vedes o que aconteceu com o senhor Dom João de Lancastre e a senhora Dona Guiomar Coutinho e o infante Dom Fernando vosso irmão? E depois… que dirão as pessoas? Vão maldizer-me, amaldiçoar-me… Já me chamam Pelicana… -porque sois formosa… Não temais. Estareis sob a minha protecção.
Cortesia de arquenet
Nove anos viveram casados Luís e Violante, mas a vida oficial do infante junto do rei, membro de seu conselho, as suas contínuas deslocações e serviços, não lhe consentiam assiduidade junto da esposa. Contínuos os estudos, as solicitações de estado, as embaixadas. Capitão do galeão ‘São João Baptista’, o ‘Caga-Fogo’ obrou valorosos feitos na batalha de Tunes ao lado do imperador Carlos contra o corsário mouro Heredin Barba-Roxa. Eu lhe enfunei, de bochechas inchadas, as velas para a carga vitoriosa. Violante compreendeu que o príncipe pertencia mais à república que a ela e nem sequer era senhora do filho, António de nome, que lhes havia nascido mal se casaram e andava lá por longe entregue a colégios de frades. Tomou então a resolução de se sacrificar para os não prejudicar... e recolheu-se a sepultar a juventude no convento de Vairão...
Cá vai o tempo a rodar nas minhas asas, vinte e um anos é um sopro. Desculpa, príncipe Luís. Chegou a tua hora. Com tantas prendas... mas tem de ser...
E agora - esfregou as mãos esqueléticas e cascalhou seus gelos a eterna Segadora - o rei João. .. E – záz! - por uma sexta-feira, onze de Junho, fulmina-o com uma apoplexia. Exéquias reais, quebrar de escudos, choram carpideiras, dobram plangentes os bronzes. Ali está, de nojo vestido, o príncipe António, o filho do príncipe Luís e da linda Violante. Está crescido o moço! Vinte e três anos! Eu o amanharei a seu tempo...
Sem filhos, sem cadilhos, solteirona, dada às letras e às artes, tem a infanta Maria, filha do terceiro matrimónio do rei Manuel, em seus sessenta anos assistido à grande ceifa. Imperturbável. Assim parece, pelo menos, que só Deus vê o que vai nas almas... Vem cá, minha querida dona. Não te pesam já os anos? Não te cansam os ossos, as gelhas, os olhos, os cabelos brancos?... Deixa-te dormir. Sossega...
Restavam-lhe três à Mondadeira. Que são para ela horas, dias, meses, anos? Vasta é a seara do mundo. Sem fadiga vai mondando até que chegue o azo de cada um. Sebastião é agora o reizinho. Para ele guarda golpe de mais primor e fatalidade. Não escutais o estrondo da batalha? Que negra montada corre seu galope no meio da grita branca da chusma dos Mouros? Aquela manhã de Agosto nos areais de África!». In Fernando Campos, O Lago Azul, Difel, 2007, ISBN 978-972-29-0874-0.
Cortesia de Difel/JDACT