Cortesia de wikipedia
«Assim maltratadas as carnes, alimentadas de magro, parece que se haveriam de recolher as insatisfações até à libertação pascal e que as solicitações da natureza poderiam esperar que se limpassem as sombras do rosto da Santa Madre Igreja, agora que se aproximam Paixão e Morte. Mas talvez que a riqueza fosfórica do peixe atice o sangue, talvez que o costume de deixar que as mulheres corram as igrejas sozinhas na quaresma, contra o uso do resto do ano, que é tê-las em casa presas, salvo se são populares com porta para a rua ou nesta vivendo, tão presas aquelas que se diz saírem, se são de nobre extracção, para ir à igreja somente, e apenas três vezes na vida, a ser baptizada, a ser casada, a ser sepultada, para o resto lá está a capela da casa, talvez que o dito costume mostre, afinal, quanto é insuportável a quaresma, que todo o tempo quaresmal é tempo de morte antecipada, aviso que devemos aproveitar, e então, cuidando os homens, ou fingindo cuidar, que as mulheres não fazem mais que as devoções a que disseram ir, é a mulher livre uma vez no ano, e se não vai sozinha por não o consentir a decência pública, quem a acompanha leva iguais desejos e igual necessidade de satisfazê-los, por isso a mulher, entre duas igrejas, foi a encontrar-se com um homem, qual seja, e a criada que a guarda troca uma cumplicidade por outra, e ambas, quando se reencontram diante do próximo altar, sabem que a quaresma não existe e o mundo está felizmente louco desde que nasceu.
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Pelas ruas de Lisboa, cheias de mulheres que vestem por igual, com os seus biocos, a saia de cima pela cabeça, uma nesga apenas a abrir para o sinal de olhos ou de beiços, código geral aprendido na clandestinidade dos sentimentos e das volúpias proibidas, por estas ruas, com uma igreja a cada esquina, um convento por quarteirão, corre um vento de primavera que dá volta à cabeça, e, não correndo o vento, fazem os suspiros as vezes dele, os que se desabafam nos confessionários ou em lugares escusos, propícios a outras confissões, as da carne adúltera, oscilando na beirada do prazer e do inferno, ambos gostosos nestes dias de mortificação, de altares despidos, de lutos rituais, de pecado omnipresente.
Entretanto, se é dia, estarão dormindo a sesta os maridos ingénuos, ou que fingem sê-lo, e se noite é, quando soturnamente as ruas e as praças se enchem de multidões que cheiram a cebola e a alfazema, e o murmúrio das orações sai pelas portas escancaradas das igrejas, se é noite, mais descansados se sentem, porque assim a demora não será tanta, já se ouviu bater a porta, soaram os passos na escada, vêm falando familiarmente a ama e a criada, pudera não, ou a escrava preta, se a levou, e pelas frinchas dançam as luzes da palmatória ou do candil, finge o marido que acorda, finge a mulher que o acordou, e se ele pergunta, Então, já sabemos o que ela responderá, que vem morta de canseira, moidinha dos pés, arrastadinha dos joelhos, mas consolada a alma, e diz o misterioso número, Sete igrejas visitei, tão apaixonadamente o disse que ou foi a devoção muita ou muita a falta dela.
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De tais desafogamentos se vêem privadas as rainhas, principalmente se já estão grávidas, e do seu legítimo senhor, que por nove meses não voltará a aproximar-se delas, regra aliás comum ao popular, mas que vai sofrendo as suas infracções. D. Maria Ana, como razões acrescentadas de recato, tem a mais a maníaca devoção com que foi educada na Áustria, e a cumplicidade que deu ao artifício franciscano, assim mostrando ou dando a entender que a criança que em seu ventre se está formando é tão filha do rei de Portugal como do próprio Deus, a troco de um convento.
D. Maria Ana deitou-se muito cedo, rezou antes de ir para a cama, em murmurado coro com as damas que a servem, e depois, coberta já pelo seu cobertor de penas, torna a rezar, reza infinitamente, começam as damas a cabecear, mas resistem como sábias, se não como virgens, e enfim se retiram, fica apenas a luz do lampadeiro vigiando, e a dama que ali passará a noite, num leito baixo, não tarda que adormeça, sonhe se quiser, que importância hão-de ter os sonhos que por trás das suas pálpebras se estão sonhando, a nós o que nos interessa é o trémulo pensamento que ainda se agita em D. Maria Ana, à beira do sono, que na Quinta-Feira Santa há-de ir à igreja da Madre de Deus, onde está um Santo Sudário que as freiras desdobrarão diante dela antes de o exporem aos fiéis, e nele serão claramente vistas as marcas do corpo de Cristo, este é o único e verdadeiro Santo Sudário que existe na cristandade, minhas senhoras e meus senhores, como todos os outros são igualmente verdadeiros e únicos, ou não seriam à mesma hora mostrados em tão diferentes lugares do mundo, mas, porque está em Portugal, é o mais vero de todos e único mesmo». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.
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