Cortesia de interpsic
«A nossa sociedade vive para lá do fim da natureza. O fim da natureza não significa, como é óbvio, que o mundo físico e os processos físicos tenham deixado de existir. Refere-se ao facto de agora existirem poucos aspectos do ambiente material que nos rodeia que não tenham sido afectados pela intervenção humana. Muitas das coisas que costumavam ser naturais já não são inteiramente naturais, embora nem sempre tenhamos possibilidade de distinguir onde acaba um dos estados e se inicia o outro. Em 1998, houve grandes inundações na China, nas quais se perderam muitas vidas. As enchentes dos maiores rios chineses têm-se repetido ao longo de toda a história do país. As cheias de 1998 foram normais ou foram influenciadas pelas mudanças climáticas a nível global? Ninguém sabe, mas estas cheias revelaram algumas características que não eram habituais e que sugerem que talvez estejamos perante causas não inteiramente naturais.
O risco criado não afecta apenas a Natureza, ou aquilo que costumava ser a natureza. Também se vai imiscuir em outras áreas da vida. Falemos, a título de exemplo, do casamento e da família, instituições que estão a sofrer transformações profundas em todos os países industrializados e, em certa medida, noutras partes do mundo. Há duas ou três gerações, quando as pessoas se casavam sabiam o que estavam a fazer; o casamento era, em grande parte, regulado pela tradição e pelos costumes, tinha semelhanças com um estado da natureza, o que de resto continua a ser verdadeiro em muitos países. Contudo, onde as formas tradicionais de fazer as coisas se estão a diluir, há a sensação de que as pessoas não sabem o que estão a fazer; e isto porque o casamento e a família são instituições profundamente alteradas. Por isso, os indivíduos estão a partir do zero, como os pioneiros.
Cortesia de wikipedia
Nestas condições, quer eles tenham ou não consciência disso, começam a pensar mais e mais em termos de risco. Têm de se confrontar com futuros cada vez mais abertos do que no passado, com todas as oportunidades e incertezas que eles comportam.
À medida que o risco provocado pelo homem se expande, o risco torna-se mais «arriscado». O nascimento da noção de risco, como já afirmei, esteve estreitamente relacionado com a capacidade de cálculo. Muitos ramos de seguro baseiam-se directamente nesta correlação. Por exemplo: podemos calcular as hipóteses de uma pessoa sofrer um acidente de cada vez que ela entra num automóvel. É uma predição actuarial, baseada em estatísticas de muitos anos. As situações de risco provocado não são assim. Não conhecemos, nem por sombras, qual o nível de risco que enfrentamos e em muitos casos só conseguimos ter a certeza quando já é demasiado tarde.
O vigésimo quinto aniversário do acidente na central nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, (comemora-se em Abril o 26º aniversário), foi um acontecimento não muito longínquo na memória. Ninguém conhece as consequências a longo prazo deste acidente. No futuro, curto ou médio prazo, numa data qualquer pode ou não vir a originar um desastre de saúde pública. Em termos de influência na saúde dos seres humanos, passa-se exactamente o mesmo em relação ao episódio da BSE no Reino Unido, ao aparecimento da chamada doença das vacas loucas. De momento, não temos a certeza de que a doença não vá provocar mais vítimas do que as já conhecidas.
Cortesia de wikipedia
Ou consideremos em que pé nos encontramos em relação às mudanças climáticas a nível mundial. Muitos cientistas versados na matéria acreditam que está a acontecer um aquecimento global e que são necessárias medidas para o contrariar. Todavia, há pouco tempo, em meados da década de 1970, a ciência ortodoxa dizia-nos que a Terra estava numa fase de arrefecimento global. Muitas das provas que serviram para apoiar a hipótese de arrefecimento da Terra, ondas de calor, seguidas de vagas de frio, condições de tempo não habituais, foram agora chamadas em defesa da tese do aquecimento global. Há um aquecimento global em desenvolvimento? Terá origens humanas? É provável, mas não sabemos ao certo e só teremos a certeza absoluta quando já for demasiado tarde.
Estas circunstâncias fizeram aparecer um novo clima moral na política, caracterizado por um jogo de puxa e empurra, por acusações de alarmismo, de um lado, e de ocultação de factos, do outro.
Se alguém, funcionário público, cientista ou investigador, considerar um risco como grave, o facto tem de ser dado a conhecer. Tem de ser intensamente publicitado para que as pessoas se convençam de que o perigo é, real, tem de haver espalhafato. Mas se houver muito barulho e depois se concluir que o risco é mínimo, as pessoas envolvidas serão rotuladas de alarmistas.
Mas suponhamos, pelo contrário, que as autoridades decidem inicialmente que o risco não é muito grande, como aconteceu com o Governo britânico no caso da carne de vaca contaminada. Neste caso, o Governo começou por dizer: estamos escudados na opinião dos cientistas; o risco não é significativo, qualquer pessoa que goste de carne de vaca pode continuar a comê-la sem preocupações. Nestas situações, se o caso muda de figura, como de facto aconteceu, as autoridades serão acusadas de ocultação de provas, como, na verdade, veio a suceder.
As coisas são ainda mais complexas do que podemos pensar depois de analisados estes dois exemplos. Paradoxalmente, o alarmismo pode tornar-se necessário para reduzir os riscos que enfrentamos mas, se for bem sucedido, parecerá exactamente isso: alarmismo. O caso da Sida é um exemplo. Para tentar que as pessoas alterassem os comportamentos sexuais, os governos e os especialistas fizeram muito barulho sobre os riscos em que incorre quem se entrega a práticas sexuais sem protecção». In Anthony Giddens, O Mundo na Era da Globalização, Editorial Presença, 2ª edição, 2000, ISBN 972-23-2573-6.
Cortesia de Editorial Presença/JDACT