terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Painel de São Vicente de Fora. Nuno Gonçalves: Parte VIII. Painel da Relíquia (2). Uma obra-prima da pintura portuguesa do século XV, pintada a óleo entre 1470 e 1480. «O objecto, pela forma cerimoniosa como é exibido sobre o pano verde, não poderia deixar de ser considerado como uma relíquia, […] é o paralelismo de uma relíquia presumivelmente cristã e de um livro hebraico, tão próximos…»

Cortesia de paineis

Painel da Relíquia
Parte 2

Uma relíquia sem correspondência anatómica
«Uma figura de vermelho mostra sobre um pano verde um objecto estranhamente impreciso, mas de significação imediata: uma relíquia bem visível, e contudo problemática. O problema reside aqui em localizar a função do que parece ser um fragmento da anatomia humana pelo contexto, mas não se assemelha de forma inequívoca a qualquer osso ou víscera normal. A identificação com um possível osso craniano explicaria o aspecto rígido e achatado, mas o desenho das suturas do crânio humano é muito diferente dos compridos filamentos que se vêem na relíquia do painel e a regularidade destes últimos impede a hipótese de identificação com tecidos residuais aderindo a um osso. O aspecto da relíquia presta-se a uma tal latitude de interpretações que ela já chegou a ser considerada como um simples pedaço de pano, hipótese que não é pior nem melhor que qualquer outra tentativa de compreensão literal.

O que nos interessa aqui salientar é que o objecto, pela forma cerimoniosa como é exibido sobre o pano verde, não poderia deixar de ser considerado como uma relíquia, e o verdadeiro problema que surge é o paralelismo de uma relíquia presumivelmente cristã e de um livro hebraico, tão próximos e exibidos de forma tão semelhante na direcção do observador. Ainda que a figura negra não fosse judaica, a forma como se mostra, lado a lado, uma relíquia e um livro ilegível aparentemente com um valor semelhante, seria, pela sua invulgaridade, mais um indício de presença da charada.

Relíquia
Cortesia de paineis

Uma caixa vazia com um fundo aos degraus
O posicionamento da caixa vazia feita de madeira serve obviamente para criar um simulacro de simetria com o objecto obscuro feito ninguém sabe de quê. E dizemos «simulacro» porque, recordemo-lo, essa simetria não se estende às figuras humanas, dado que o frade de barbas num painel e o pobre caminhante que transporta a caixa no outro, não se orientam de forma concordante nas suas atitudes (lado para que se voltam). Mas qual a utilidade funcional da caixa e por que razão é transportada às costas de um pobre homem com a barba por fazer?
Demasiado estreita para caixão, apresenta uma peculiaridade aparentada com os artifícios gráficos a partir dos quais se criam ilusões de óptica e efeitos de perspectiva: tanto as barras escuras transversais de difícil interpretação que se podem observar no seu fundo (por que razão haveriam as tábuas de aparecer em duas cores diferentes, e dispostas com tal regularidade?) como a sombra nos limites desse mesmo fundo (que mantém os extremos das tábuas na obscuridade) contribuem para criar uma impressão de degraus ascensionais que não pode ser casual.

Limites do painel (sem moldura)
Cortesia de paineis

Pormenor ainda mais estranho, observa-se com clareza, no limite superior do painel, que as tábuas laterais da caixa, longe de terminarem nos ângulos em que encontram a tábua de topo, se prolongam verticalmente para além dela e para fora da pintura, num reforço da sugestão ascensional. À objecção que pode ser levantada, segundo a qual o pintor não se teria importado com uma incongruência que, de qualquer modo, ficaria localizada no limite da superfície pintada, porventura rente à moldura e fora do campo de visão, poder-se-á responder que não dá mais trabalho, nem exige mais arte, pintar uma tábua lógica do que pintar uma tábua pouco menos que surrealista, com um prolongamento totalmente descabido.

De resto, o leitor atento já terá tido oportunidade de registar a forma como o pintor utilizou repetidamente os limites dos painéis para veicular informação disfarçada. Acrescente-se que a moldura que actualmente enquadra o painel é suficientemente estreita para deixar perceber de forma inequívoca o estranho efeito das tábuas intermináveis, conforme o leitor poderá verificar com os seus próprios olhos, se tiver ganho o hábito de dirigir a atenção para as zonas limítrofes ou sombrias do políptico, onde se concentram numerosas sugestões e pistas quase subliminares.
Obviamente absurda numa leitura literal – a menos que existam caixões sugestivos de fundos às escadinhas, feitos de tábuas que o carpinteiro se esqueceu de serrar – a sugestão simbólica é ignorada, mas ela está lá e testemunha, mais uma vez, a intencionalidade que só uma leitura gráfica atenta pode fazer entender de forma completa.

A caixa vazia
Cortesia de paineis

Para que pode servir uma caixa vazia que se prolonga interminavelmente, com um fundo aos degraus, às costas de um pobre homem com a barba por fazer, é pois o problema que registamos, e não deve ser dos menores para as teses literalistas que rejeitam um humilde ascensor do séc. XV, feito de madeira e intenção moral, como adiante veremos...» In Painéis de São Vicente de Fora.


Cortesia de Painéis/JDACT