sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Chão de Sombras. Maria do Rosário Pimentel. Estudos sobre Escravatura. «O desejo de lucro levava-os a desprezar as regras e a procederem cegamente no negócio. O resultado era a diminuição do tão ambicionado lucro que, juntamente com os escravos, se sepultava»

Cortesia de ecolibri

A todos aqueles que resistem à imposição de domínios, à violação de ideias e sentimentos, à perversão de princípios

Reflexões sobre a escravidão e o tráfico negreiro
«No entanto, à sua valia não correspondia uma condição social digna ou muito simplesmente humana. Luís António de Oliveira Mendes, na segunda metade do século XVIII, refere que dos 10 ou 12 mil escravos que chegavam anualmente a Luanda vindos de diversos presídios, alguns situados a mais de 100 léguas de distância, só 6 ou 7 mil eram transportados para o Brasil. Os restantes iam morrendo enquanto esperavam ser embarcados, fechados em pátios de altas paredes, presos a correntes de ferro ou a pranchas de madeira, com as quais já haviam viajado do interior ao litoral.
Atravessavam a ‘água salgada’ a bordo dos barcos negreiros, designados ‘tumbeiros’ por se assemelharem a caixões flutuantes, onde a exiguidade do espaço, a falta de ar, as condições de higiene, a fome, a ardência do clima os dizimava com grandes epidemias. Segundo dizia o capitão de um navio negreiro, podia considerar-se uma boa viagem quando dos 600 escravos carregados só se perdiam 200. Em alguns casos, os capitães tinham consciência de como eram prejudiciais estas condições e procuravam remediá-las com uma ou outra medida, geralmente com pouco êxito, uma vez que, de acordo com os cálculos económicos prevalecentes, era preferível vê-los morrer do que terem muitos cuidados com a sua saúde. De um bom e humano tratamento resultava a durabilidade e rentabilidade dos escravos. Os negociantes, porém, apenas se interessavam pelo embarque do maior número possível. O desejo de lucro levava-os a desprezar as regras e a procederem cegamente no negócio. O resultado era a diminuição do tão ambicionado lucro que, juntamente com os escravos, se sepultava.

Pormenor do monumento a Sá da Bandeira, 1884
Largo de D. Luís em Lisboa
jdact

Quanto mais longas fossem as viagens piores se tornavam. Aquelas embarcações que iam da Guiné e da região de Daomé para a Baía beneficiavam de um trajecto mais rápido e, por isso, registavam um menor número de mortos. Nas que se dirigiam para o sul do Brasil, os escravos padeciam a mais longa, cruel e mortífera travessia do oceano, a que mais vítimas fazia e maiores tragédias provocava. Sinal de uma incipiente mentalidade comercial que levou ao desregramento e enfraquecimento de toda a actividade e suscitou críticas de autores que, conscientes destes problemas, procuraram tornar o tráfico simultaneamente mais produtivo e mais humano. ‘Contrate-se nos escravos; mas sejam bem tratados como ensinei’, dizia Damião Cosme, um desses autores, acrescentando que, quem assim procedesse, seria por certo homem de grandes negócios, uma vez que os escravos eram a principal mercadoria que se extraía de Angola. São razões que levam à apreciação do tráfico e da escravidão numa perspectiva de mentalidades, onde um mal gerido interesse se revela um poderosíssimo factor antieconómico.

Os males eram tantos e tão grande o número de vítimas que, a 28 de Março de 1684, a coroa tomou posição pela primeira vez. Procurando minimizar o estado calamitoso a que tinha chegado o tráfico, limitou o embarque de escravos de acordo com a arqueação e condições dos navios. A determinação, porém, de nada valeu. A lotação dos navios viria de novo a ser objecto da lei de 1 de Julho de 1730 e do alvará com força de lei de 11 de Janeiro de 1758. Mas, apesar das severas penas em que incorriam os infractores, estas leis não surtiram o efeito desejado. Vários foram os recursos encontrados para embarcar sempre mais alguns negros além dos permitidos, mesmo com prejuízo de toda a ‘mercadoria’. A propósito, Luís Oliveira Mendes, em 1793, dizia que se abusava inteiramente dos preceitos da lei. E Elias da Silva Corrêa, pela mesma altura, referia ser tão viciada a sua aplicação que ficava ‘quase inútil a providência dela’.

Venda de escravos na costa africana
Museu de Arquitectura de Liége, 1989
jdact

Por alvará de 24 de Novembro de 1813 voltou de novo a legislar-se nesse sentido, o que prova que a legislação anterior permaneceu letra morta, ou porque era insuficiente ou porque, de facto, as infracções à lei eram muitas. O próprio estado dos barcos estava de tal modo degradado que nenhuma viagem se podia considerar humanamente capaz.
Em 1814, o redactor do jornal “O Portuguez”, publicado em Londres, ao comentar a lei, destacava o facto ao advertir ‘que os navios que a esse tráfico se determinassem fossem bons de vela, e bem construídos, e nunca velhos e ronceiro como são pela maior parte os que se costumam empregar em tal negócio’. Providência essencial de que o legislador se havia esquecido, comentava, para diminuir a duração das viagens e os riscos de mortalidade. Tornam-se aqui evidentes os diversos níveis de apreciação desta questão e, sobretudo, o distanciamento que marca a determinação legal da sua aplicação prática.

O tráfico era um longo processo de degradação humana que se iniciava com a captura e transporte dos escravos para os portos marítimos africanos. Ao continente americano chegavam os mais fortes, aqueles que resistiam a toda esta selecção e que bem podiam ser apelidados de ‘homens de pedra ou de ferro’. Aqui, era necessário terem muita sorte para ficarem ao serviço de um senhor menos desumano e, de preferência, serem utilizados nos serviços urbanos, o que lhes permitia uma existência menos agressiva. Ocasionalmente podiam ser favorecidos em testamentos ou pertencerem a um cristão que, na hora da morte, se penitenciava com a sua libertação, o que, na maior parte das vezes e sobretudo quando já eram velhos, representava terem como herança uma vida ainda pior. O mais comum era alinharem na condição das bestas, com as quais, se afirmava, compartilhavam as mesmas qualidades». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.

Cortesia de Edições Colibri/JDACT