«As “cartas” de Vieira têm sido lidas principalmente como documento histórico, o que é perfeitamente justificado pela riqueza de informações que contêm acerca da vida do autor e da sua época. Antes de mais, informações que permitem traçar com bastante minúcia o seu percurso biográfico, pelo que a valiosa “História de António Vieira”, de Lúcio de Azevedo, tem as “cartas” como principal fonte de informação». In FCGulbenkian.
“Carta” IV
Ao marquês de Nisa, 1646, dia 11 de Março
«O certo é, senhor, que, como as coisas de França se entendem diferentemente em Portugal, assim das de Portugal não pode haver cabais notícias em França, e ainda no mesmo Portugal receio que as ache V Ex.ª com dificuldade, porque a gente daquele país, que V Ex.ª muito bem conhece, poucas vezes julga das coisas com os olhos livres de paixão. Grande mercê faz Deus a Portugal em levar 1á aV Ex.ª; mas entendo que a não tem feito menor a V Ex.ª em ter a V Ex.ª tantos anos fora de Portugal. Do que V Ex.ª me diz na sua carta entendo eu que V Ex.ª está no conhecimento desta verdade; mas as experiências de mais perto ainda hão-de confirmar mais a V Ex.ª nela. Esta é a razão por que se obra menos do que convém, e do que se pudera, e não têm tanta culpa as causas primeiras como o mundo lhes imputa; porque com instrumentos contrários só Deus pode obrar, e quando o faz é milagrosa e não naturalmente. Deus nos mude as condições, que, enquanto formos portugueses, não sei se faremos coisa digna de tão honrado nome.
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Muito estimo que haja sempre sido da opinião de V Ex.ª a paz com a Holanda, a qual está nos termos que V Ex.ª vê, porque a alguns valentões de Portugal lhes pareceu que eram poucos para inimigos os castelhanos. Eu estava numa cama sangrado dezasseis vezes, quando do Brasil me vieram as primeiras notícias do que se queria intentar; e, porque o impedimento me não permitia falar com S. M., e dizer-lhe pessoalmente o que entendia naquela matéria, como quem tantos anos havia estado no Brasil e sabia o que lá se pode, pedi a um prelado muito confidente de S. M. lhe quisesse representar de minha parte o perigo e dificuldade desta empresa, e que o segurasse que era impossível render-se a principal força, por mais que os de lá, enganados do desejo da liberdade, o prometessem; e acrescentava que, ainda quando o Brasil se nos desse de graça, era matéria digna de muita ponderação ver se nos convinha aceitá-lo com os encargos da guerra com a Holanda, em tempo que tão embaraçados nos tem a de Castela; porque são homens os Holandeses com quem não só vizinhamos no Brasil, senão na Índia, na China, no Japão, em Angola, e em todas as partes da terra e do mar onde o seu poder é o maior do Mundo.
Estas e outras razões propus àquele prelado, que não sei se as representou a S. M.; só sei que por nosso mal fui profeta, e queira Deus que aqui parem os meus temores. O que V Ex.ª diz de se haver de propor o tratado da paz absolutamente para que, descendo-se aos meios da conveniência, se ponha em prática o da compra, é matéria que não tem dúvida pela aceitação e conveniência do mesmo contrato, que, oferecido da nossa parte em primeiro lugar, fica de muito desigual condição; mas não me conformo facilmente com os que querem que a proposição da paz com Holanda, e da mediação de França, haja de nascer dos mesmos Holandeses; porque, se havemos de esperar que eles dêem o primeiro movimento a este negócio, nunca se começará; porque a eles está-lhes muito melhor a guerra que a paz, e nós não estamos em tempo de a dilatar, porque na dilação crescerão os empenhos, e com eles a dificuldade da convencia. [SIC] [...].Criado de V Ex.ª. António Vieira.
In António Vieira, Cartas, coordenação e anotações de J. Lúcio de Azevedo, INCM, Lisboa, 1997, Fundação C. Gulbenkian, HALP 2006.
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