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A Guerra
«As acções humanas não recebem os aplausos de quem as obra, mas sim de quem as vê. A determinação de casar o infante Pedro com a filha de João Manuel levou Afonso IV, em pleno mês de Julho, a convocar cortes para Santarém. As cortes eram, na pequenez das coisas com que os homens então viviam, um vestíbulo quase familiar, onde se encontravam os conhecidos. Mas, as cortes eram também, por outro lado, a tentativa de afirmação e de legitimação de acções, que não cabiam apenas ao rei mas empenhavam toda a nação, ou pelo menos parte dela, visto que muitos não se identificavam pelos mesmos valores religiosos, nem até pelos mesmos hábitos quotidianos. Portugal era sentido como uma fronteira onde podiam ou não coexistir comunidades distintas regidas, por isso, por orientações diferentes.
As cortes de Santarém são, desde logo, uma encenação. O sol de Julho repicava sobre os campos e foi em Almeirim, ao falar com Lopo Fernandes, que o rei e o chanceler as decidiram. Santarém representa na Geografia do país um ponto intermédio, que guarda as qualidades dum centro. A aculturação cristã, depois da Reconquista que se prendia à própria génese da fundação da nacionalidade portuguesa, foi relativamente fácil, sem sobressaltos. Dir-se-ia que todos esses vinhedos brumosos e sempre verdes do Norte se enraízavam à porta do deserto africano, do qual Santarém era o último mirante. Havia surpresa de lado a lado e o homem do Norte, trazido pelas Cruzadas, sobreviveu aqui num espanto perpétuo, olhando o rio e as isoladas mouriscas que iam tirar água às noras. A veneração da beleza foi também aqui uma veneração do outro, e por isso a premonição primeira dum destino inteiramente novo.
Os procuradores e os homens de Concelho afluíram de todo o país a Santarém, depois do Natal de 1333. Traziam consigo a ideia duma festa ou até duma fraternidade em que todos participassem como iguais, quer usassem a mitra episcopal ou a pelica friorenta do burguês. Afonso falou-lhes sobretudo do infante e da necessidade de desfazer o casamento deste com Branca de Castela, por impossibilidade natural ou indisponibilidade matrimonial desta.
Branca raramente tinha sido vista pelo povo de Lisboa ou de Santarém e vivia num estado de clausura que prefigurava um destino rígido e recolhido. Os seus achaques eram particulares e passavam na sua vida como momentos duma forte e tremente solidão. Fechava-se e jejuava horas seguidas de janelas fechadas e pés descalços nas lajes frias. Embrulhava os tapetes e nessas alturas não abria a porta a ninguém. Depois, de madrugada, era vista, na sua pelica negra e na sua touca de veludo, dirigir-se às cozinhas onde pedia um caldo quente. Era magra e os seus catorze anos pareciam, pelo menos, o dobro. Tinha a rectidão dum coleóptero e o seu peito era liso como uma planície.
Em Março os campos são, a Oeste, um pequeno lamaçal onde só a custo abrem as primeiras flores. O Inverno de 1334 tinha sido chuvoso e os últimos dias de Março raiavam agora fortes e quentes. A terra estendia-se castanha e barrenta, proporcionando aos homens um trabalho fértil e delicado. Ia-se da Lourinhã até à Atouguia com os olhos no horizonte límpido, fiando as várias ilhas que em frente da costa se recortavam nítidas. Primeiro, a ilha de Peniche, enorme porção de costa enraízada na orla do mar, depois as brumosas penhas de outras ilhas diversas e mais distantes». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.
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