«Quando veio a manhã foi assim, sem autor e desfigurada, que a obra apareceu aos outros que por acaso a encontraram no caminho. Então puseram-se a interrogá-la longamente pelo dia adiante. A interrogar o silêncio. Como admirarmo-nos se o silêncio não responde? Mas esses homens eram professores, críticos, gente imensamente sensata que não tem descanso enquanto não encontra um nome para se livrar de tudo quanto é grave e inquietante tudo quanto não tem um nome. Professores, no sentido de Kierkegaard. Desesperados do estranho animal silencioso, ao fim do dia concluíram estar na presença não dum enigma qualquer, mas da essência mesma do enigma.
Era o mistério abrupto dum monstro sem sentido e sem autor. Seria excelente que tivessem ido embora em silêncio. Teriam respeitado o silêncio. Mas era necessário catalogar o frnómeno. Chamaram-lhe então 'Esfinge' que significa "mistério". Como progresso era notável. Mas ficaram satisfeitos porque imaginaram com razão que o seu autor, se tinha autor, não encontrara um nome para a sua obra. Na verdade ninguém tem nome para si próprio. O resto é a história banal dum equívoco com excelente propaganda como é a dos professores. Eles desertaram o deserto para anunciar por toda a parte que surgira um enigma novo. Como poderiam imaginar, esses homens sem imaginação, que a resposta ao sorriso feminino da obra jazia sob eles, no poeta adormecido por uma só noite em que não pôde vigiar a sua criatura.
A segunda história, a da esfinge grega, é mais estranha. Não podemos dizer agora que o mistério nasce apenas por haver homens obrigados por profissão a inventar enigmas e a fazer perguntas absurdas. É a própria esfinge quem nos propõe uma questão. A todos, aos professores e aos poetas. A poesia não é somente aceitação de silêncio. A esfinge interroga os jovens tebanos e fá-lo através de palavras que toda a gente compreende mas a que ninguém responde. O enigma é agora real e os jovens mortos testemunham da seriedade do mistério. Os poetas oficiais de Tebas, e os sacerdotes, não compreendiam como a poesia se pudera tornar mortal. Como o deus silencioso do antigo Egipto, adquirira poderes para devorar o seu criador. Cada poeta sabia que se repetisse novamente o gesto original da criação o monstro se tornaria humano, mas esquecera-se dele. A esfinge parecia-lhes até mais divina que eles próprios e acabaram como os “outros” perguntando-se o que é que ela significava e quem seria.
Impotentes, imaginaram dominar o monstro repetindo os antigos encantamentos, fazendo poesia da poesia. Isto é, gaguejando. Só os mais lúcidos viram que a hora do seu destino solar tinha passado. Haviam cometido o pecado radical olhando para trás como a mulher de Loth. Assim o seu passado os alcançou, mineralizando-os como à mulher bíblica. Os seus poemas, a esfinge criada, vinham novamente ter com eles. Não podiam renovar-se». In Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Gradiva, Lisboa, 2003, ISBN-972-662-907-1.
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