terça-feira, 24 de abril de 2012

Afonso VI. Um Monarca Infeliz. Espoliado da mulher, do trono e da liberdade. «Os dias do cativeiro passava-os a caminhar continuamente em todos os sentidos dentro do reduzido compartimento, a sós com a sua raiva, o seu sofrimento e a sua impotência, como uma derrotada fera enjaulada. De tal forma que o pavimento ladrilhado sofreu enorme desgaste com o arrastar dos seus pés…»


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«É fora de dúvida que antes desta proclamação, que tudo faz prever seja apócrifa, repeliu o inditoso monarca dos seus aposentos não só o marquês de Cascais como outros fidalgos que o procuravam. Ora, sendo assim, não será de estranhar que o secretário de Estado, Cavide, tivesse logrado que ele assinasse a procuração, quando todos os outros, antes dele, fracassaram nesse intento? O facto é tanto mais surpreendente porquanto era bem notória a sua firme vontade de jamais renunciar, declarada várias vezes enquanto dispunha de liberdade, tomado de fúria e desespero ao reconhecer que o queriam esbulhar do poder.
Desventurado príncipe! Afinal, fosse como fosse sempre o seu destino estava traçado, bem traçado. Não só foi arrojado do trono para a prisão, como igualmente foi submetido a aviltante processo que legalizou a ida da mulher para os braços do irmão. A causa da nulidade do matrimónio do rei e de D. Maria Francisca foi apressadamente julgada, por juízes da inteira confiança do príncipe Pedro, gente que quando aquele subiu ao trono teve a recompensa de ascender a altos postos do reino, e sem a apresentação de provas concludentes, que o direito canónico, como o respeito pela justiça, exigiam.
Em 24 de Março de 1668 foi publicada a sentença de nulidade do casamento e em 28 desse mês, ou sejam quatro dias decorridos, celebrava-se o novo matrimónio da rainha D. Maria Francisca, desta vez com o cunhado, o príncipe Pedro, elevado a regente do reino. Praticava-se, aliás sem perda de tempo, um dos mais monstruosos actos que algum príncipe jamais tentou contra um seu irmão e rei.
Afonso VI, vítima das doenças de toda a espécie que o massacravam, do rancor hipócrita do irmão e da traição, sempre abjecta, dos políticos de então, com raríssimas e honrosas excepções!, continuou preso no palácio. Mas a sua proximidade não era conveniente politicamente. Em 1669, o pobre títere foi desterrado para a Ilha Terceira, onde viveu durante seis anos numa modesta casa, dependência do Castelo de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo.

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Durante esse período, na corte, alguns dos derradeiros partidários do exilado soberano prepararam activamente uma conspiração, com o justiceiro fim de o reporem no trono. O regente todavia, tomando conhecimento prévio da conjura, que fez frustrar, ordenou o seu regresso ao Continente, para sobre ele exercer uma mais eficiente vigilância. E, em 1674, o desditoso monarca sem reino deu entrada no paço de Sintra, sendo ali encerrado “num pequeno quarto, cuja janela estava gradeada de ferro”.

Como o desgraçado ali viveu é fácil imaginar. Não lhe permitiam sair senão nos dias de missa. E escondiam-no sistematicamente do povo com receio de explosões do sentimentalismo popular.
Consentiam-lhe que assistisse às cerimónias religiosas, mas apenas de uma janela, donde não podia ser visto pela assistência.
Os dias do cativeiro passava-os a caminhar continuamente em todos os sentidos dentro do reduzido compartimento, a sós com a sua raiva, o seu sofrimento e a sua impotência, como uma derrotada fera enjaulada. De tal forma que o pavimento ladrilhado sofreu enorme desgaste com o arrastar dos seus pés nesses infindáveis passeios, durante os longos dias, meses, anos que ali se conservou.
Os seus partidários, no entanto, não desistiam de o libertar e, com esse fito alugaram uma casa na serra de Sintra, donde lhe faziam acenos, enviando-lhe sinais de que tivesse esperança pois trabalhavam para a sua salvação…
Também esta conspiração foi prematuramente descoberta. O único resultado alcançado foi a transferência do soberano para outro quarto, voltado para diferente ponto onde esteve os últimos três anos da sua vida infernalmente infeliz. Finalmente, a 16 de Setembro de 1683, o rei Afonso VI exalava o derradeiro suspiro, libertando-se, enfim, dum destino tão dramático como desgraçado. Na madrugada desse dia, os seus guardas e familiares ouviram-no gritar, pedindo que o vestissem imediatamente, pois queria ir ouvir missa.
Fizeram-lhe a vontade, sem que nada deixasse prever que era o fim dele que chegava. Durante a celebração da cerimónia, Afonso VI, em dado momento, começou a resfolegar penosamente, ao mesmo tempo que, levantando os braços e o olhar ao alto, exclamava audivelmente.
  • -‘Senhor! Perdoai os meus pecados!’
Aproximou-se dele o confessor, e quem apertou convulsivamente a mão, puxando-o a si. Foi tudo! Dentro de curtos momentos, Afonso VI expirava, vitimado por um ataque apoplético, fim lógico para quem tanto comia e dormia.
Tinha quarenta anos de idade, curta vida tão tristemente assinalada pela fatalidade. Desses, mais de quinze passara-os no cativeiro. Ao regente do reino, o príncipe Pedro, deve ter-lhe sorrido a própria alma, escancarada numa gargalhada de satisfação ao receber a notícia, tão desejada e que para si muito tardara, da morte daquele irmão, a quem ele espoliara do supremo bem da vida: a liberdade depois de o ter esbulhado do trono e da esposa.

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O regente Pedro podia, enfim, sossegar. Agora, já não havia ninguém no mundo com mais legítimo direito do que ele à coroa do reino de Portugal. Pode supor-se, possivelmente, o júbilo íntimo, embora o protocolo impusesse o luto exterior na corte, com que o ambicioso regente pôde finalmente tomar o título de rei, sob o nome de Pedro II.
O que ele não conseguiu, apesar de ter feito desaparecer o processo da causa em que despojara o irmão, e não obstante o ,poder que se arrogava, foi apagar inteiramente das páginas da Historia os infames feitos que praticou e que o guindaram à regência do reino e, mais tarde à posse do ceptro real». In Américo Faria, Dez Monarcas Infelizes, Livraria Clássica Editora, colecção 10, Lisboa, s/d.

Cortesia de Livraria Clássica Editora/JDACT