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«É fora de dúvida que antes desta proclamação, que
tudo faz prever seja apócrifa, repeliu o inditoso monarca dos seus aposentos
não só o marquês de Cascais como outros fidalgos que o procuravam. Ora, sendo assim,
não será de estranhar que o secretário de Estado, Cavide, tivesse logrado que ele
assinasse a procuração, quando todos os outros, antes dele, fracassaram nesse
intento? O facto é tanto mais surpreendente porquanto era bem notória a sua firme
vontade de jamais renunciar, declarada várias vezes enquanto dispunha de
liberdade, tomado de fúria e desespero ao reconhecer que o queriam esbulhar do
poder.
Desventurado príncipe! Afinal, fosse como fosse
sempre o seu destino estava traçado, bem traçado. Não só foi arrojado do trono
para a prisão, como igualmente foi submetido a aviltante processo que legalizou
a ida da mulher para os braços do irmão. A causa da nulidade do matrimónio do rei e de D. Maria
Francisca foi apressadamente julgada, por juízes da inteira confiança do
príncipe Pedro, gente que quando aquele subiu ao trono teve a recompensa de
ascender a altos postos do reino, e sem a apresentação de provas concludentes,
que o direito canónico, como o respeito pela justiça, exigiam.
Em 24 de Março de 1668 foi publicada a sentença de
nulidade do casamento e em 28 desse mês, ou sejam quatro dias decorridos,
celebrava-se o novo matrimónio da rainha D. Maria Francisca, desta vez com o
cunhado, o príncipe Pedro, elevado a regente do reino. Praticava-se, aliás sem perda
de tempo, um dos mais monstruosos actos que algum príncipe jamais tentou contra
um seu irmão e rei.
Afonso VI, vítima das doenças de toda a espécie que o
massacravam, do rancor hipócrita do irmão e da traição, sempre abjecta, dos
políticos de então, com raríssimas e honrosas excepções!, continuou preso no
palácio. Mas a sua proximidade não era conveniente politicamente. Em 1669, o
pobre títere foi desterrado para a Ilha Terceira, onde viveu durante seis anos
numa modesta casa, dependência do Castelo de S. João Baptista, em Angra do
Heroísmo.
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Durante esse período, na corte, alguns dos derradeiros
partidários do exilado soberano prepararam activamente uma conspiração, com o justiceiro
fim de o reporem no trono. O regente todavia, tomando conhecimento prévio da
conjura, que fez frustrar, ordenou o seu regresso ao Continente, para sobre ele
exercer uma mais eficiente vigilância. E, em 1674, o desditoso monarca sem reino
deu entrada no paço de Sintra, sendo ali encerrado “num pequeno quarto, cuja
janela estava gradeada de ferro”.
Como o desgraçado ali viveu é fácil imaginar. Não lhe
permitiam sair senão nos dias de missa. E escondiam-no sistematicamente do povo
com receio de explosões do sentimentalismo popular.
Consentiam-lhe que assistisse às cerimónias religiosas,
mas apenas de uma janela, donde não podia ser visto pela assistência.
Os dias do cativeiro passava-os a caminhar continuamente
em todos os sentidos dentro do reduzido compartimento, a sós com a sua raiva, o
seu sofrimento e a sua impotência, como uma derrotada fera enjaulada. De tal
forma que o pavimento ladrilhado sofreu enorme desgaste com o arrastar dos seus
pés nesses infindáveis passeios, durante os longos dias, meses, anos que ali se
conservou.
Os seus partidários, no entanto, não desistiam de o libertar
e, com esse fito alugaram uma casa na serra de Sintra, donde lhe faziam acenos,
enviando-lhe sinais de que tivesse esperança pois trabalhavam para a sua
salvação…
Também esta conspiração foi prematuramente descoberta.
O único resultado alcançado foi a transferência do soberano para outro quarto,
voltado para diferente ponto onde esteve os últimos três anos da sua vida
infernalmente infeliz. Finalmente, a 16 de Setembro de 1683, o rei Afonso VI
exalava o derradeiro suspiro, libertando-se, enfim, dum destino tão dramático
como desgraçado. Na madrugada desse dia, os seus guardas e familiares
ouviram-no gritar, pedindo que o vestissem imediatamente, pois queria ir ouvir
missa.
Fizeram-lhe a vontade, sem que nada deixasse prever
que era o fim dele que chegava. Durante a celebração da cerimónia, Afonso VI,
em dado momento, começou a resfolegar penosamente, ao mesmo tempo que,
levantando os braços e o olhar ao alto, exclamava audivelmente.
- -‘Senhor! Perdoai os meus pecados!’
Aproximou-se dele o confessor, e quem apertou
convulsivamente a mão, puxando-o a si. Foi tudo! Dentro de curtos momentos,
Afonso VI expirava, vitimado por um ataque apoplético, fim lógico para quem
tanto comia e dormia.
Tinha quarenta anos de idade, curta vida tão tristemente
assinalada pela fatalidade. Desses, mais de quinze passara-os no cativeiro. Ao
regente do reino, o príncipe Pedro, deve ter-lhe sorrido a própria alma,
escancarada numa gargalhada de satisfação ao receber a notícia, tão desejada e
que para si muito tardara, da morte daquele irmão, a quem ele espoliara do
supremo bem da vida: a liberdade depois de o ter esbulhado do trono e da
esposa.
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O regente Pedro podia, enfim, sossegar. Agora, já não
havia ninguém no mundo com mais legítimo direito do que ele à coroa do reino de
Portugal. Pode supor-se, possivelmente, o júbilo íntimo, embora o protocolo
impusesse o luto exterior na corte, com que o ambicioso regente pôde finalmente
tomar o título de rei, sob o nome de Pedro II.
O que ele não conseguiu, apesar de ter feito desaparecer
o processo da causa em que despojara o irmão, e não obstante o ,poder que se
arrogava, foi apagar inteiramente das páginas da Historia os infames feitos que
praticou e que o guindaram à regência do reino e, mais tarde à posse do ceptro
real». In Américo Faria, Dez
Monarcas Infelizes, Livraria Clássica Editora, colecção 10, Lisboa, s/d.
Cortesia de Livraria Clássica
Editora/JDACT