Ilustração de José Ruy
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… uma paixão como nunca houve mais nobre, mais grave, nem mais ardente.
Continuação da Quarta Carta
«Bem sabias que não ficarias para sempre em Portugal. Porque é que me
escolheste a mim para me tornar tão infeliz? Terias, sem dúvida, encontrado
neste país uma mulher mais bela, com a qual terias tido os mesmos prazeres, já
que só prazeres grosseiros procuravas, uma mulher que te tivesse amado fielmente
enquanto te tivesse junto dela, uma mulher que com o tempo se pudesse consolar da
tua ausência e que poderias ter podido deixar sem perfídia e sem crueldade. O
procedimento que tiveste é muito mais o de um tirano apostado em perseguir do
que o de um amante que só deve pensar em agradar.
Ai de mim! Porque usas de tamanho rigor para com um coração que é teu?
Bem vejo que tanta facilidade tens tu em te deixar persuadir contra mim como eu
tive em me deixar persuadir a teu favor. Eu teria resistido, sem precisar de
recorrer a todo o amor que te tenho e sem pensar que fazia alguma coisa de extraordinário,
a razões bem maiores do que podem ser as que te levaram a deixar-me. Tais razões
ter-me-iam parecido bem fracas, e nenhuma poderia, jamais, arrancar-me de junto
de ti. Mas tu quiseste aproveitar pretextos que encontraste para regressar à
França: um barco ia partir, e havias de o deixar partir? A tua família tinha-te
escrito:
- ‘mas não conheces tu quantas perseguições eu sofri por parte da minha? A tua honra impunha-te que me abandonasses; preocupei-me eu alguma vez com a minha? Sentias-te na obrigação de ir servir o teu rei; se é verdade o que se diz, não tem ele qualquer necessidade do teu auxílio, e certamente te haveria escusado.
A minha felicidade teria sido grande de mais se tivéssemos passado
juntos a nossa vida. M as, já que uma ausência cruel nos devia separar, parece
que devo sentir-me satisfeita por não ter sido infiel e por nada deste mundo
quereria ter cometido uma acção tão perversa.
Pois quê? Conheceste o mais íntimo do meu coração e da minha ternura e pudeste
resolver-te a deixar-me para sempre e a expor-me aos terrores que se apoderam
do meu ser, ao pensar que só te lembras de mim para me sacrificar a uma nova
paixão?
Bem vejo que te amo como uma louca. No entanto, não me queixo de toda a
violência dos arrebatamentos do meu coração; e vou-me acostumando às suas
perseguições e não poderia viver sem esse prazer que descubro e de que gozo
amando-te no meio de mil dores.
Acompanha-me constantemente, e é para mim desagradável em extremo o ódio
e o desgosto que sinto por todas as coisas. A minha família, os meus amigos,
este convento, tudo me é insuportável! Tudo o que sou obrigada a ver e tudo o
que tenho de fazer por absoluta necessidade me é odioso. Sou tão ciumenta da
minha paixão que até me parece que todas as minhas acções e que todos os meus
deveres a ti se referem.
Sim! Sinto escrúpulos, se não te dou todos os momentos da minha vida. Que
faria eu, pobre de mim! Sem tanto ódio e tanto amor como os que enchem o meu
coração? Poderia eu sobreviver àquilo que me ocupa sem cessar, para levar uma
vida tranquila e sossegada? Um vazio assim, e uma tal insensibilidade, não
poderiam ser para mim». In Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, texto
da primeira edição francesa de 1669, Europa América, 1974.
continua
Cortesia de P. Europa-América/José Ruy/ JDACT