quarta-feira, 2 de maio de 2012

Alfredo Alves. D. Henrique o Infante. Memória Histórica: Parte IX. «O rei João, atento, olhava. Os Infantes curvavam-se, numa curiosidade, examinando; e em meio deles, Henrique destacava-se mais que todos atento, um vinco de meditação na fronte larga, o olhar carregado e fito, a mão direita segurando o queixo»



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A Tomada de Ceuta
«Sabia se já que o ancoradouro da praça era bom.
- Que lhe dissessem as disposições dele, inquiria o rei.
E o prior, com modo grave, respondeu-lhe:
- Que Sua Real Senhoria mandasse vir para ali duas cargas de areia e umas fitas e meio alqueire de favas e uma escudela de pão.
O rei pasmou. Mas o prior retorquiu:
- Sem isso nada vos direi, senhor.
- Ora, sus, dom Prior - dizia o Rei, a rir, a rir, quereis usar de feitiços como o capitão de “astrolomias”?
Mas Álvaro Camello pondo um joelho no lajedo da sala onde falavam, e tendo-se-lhe trazido os objectos que requisitara, ali principiou a traçar em relevo, no chão, a topografia de Ceuta; as colinas, o monte da Almina, os quarteirões de casas, as abras, os ancoradouros. O rei João, atento, olhava. Os Infantes curvavam-se, numa curiosidade, examinando; e em meio deles, Henrique destacava-se mais que todos atento, um vinco de meditação na fronte larga, o olhar carregado e fito, a mão direita segurando o queixo. Nenhum se interessava mais do que ele nessa conquista da cidade querida do Maghreb; já se imaginava a desembarcar naquelas praias, a escalar aquelas quadrelas, a erguer o seu balsão na muralha branca de Mohammed.
- Ora aí tendes, senhor, as minhas feitiçarias!, dissera o prior.
Ao que João I respondeu:
- Bem avisado sois e sages, meu cavaleiro!
E afastaram se todos, comentando e meditando no caso.
O infante Henrique gravou na mente todo aquele mapa que Álvaro Camello traçara ali no ladrilho da sala do paço de Sintra, e o seu pensamento irrequieto começou desde então a divagar por aquelas colinas e muralhas, enseadas, torres e casarias.
Ia-se decidindo pouco a pouco a expedição. O rei João resolveu-se a falar a D. Filipa em ir combater os mouros.
A virtuosa dona resignadamente aceitava a ida dos infantes; filhos de reis deviam ser cavaleiros. Sim, os infantes deviam ir; quisera ela, a boa mãe, que bem próximo estivesse já o dia em que cingisse com suas mãos amoráveis as espadas de heróis aos filhos queridos; dar-lhes-ia ela também uma coroa de beijos e um colar carinhoso de abraços. Mas para que havia de ir também o rei? Não ganhara já tanta glória no passado combater? Que descansasse das fadigas das guerras; que se dedicasse unicamente às da governação do Estado, já não era pequeno o labor Lembrasse-se que ia declinando na existência, como ela também; que descansasse a seu lado até à morte que bem cedo podia vir. João I estremecia e hesitava. As palavras suaves da esposa infundiam-lhe na alma uma impressão religiosa, como se fossem invocações de litanias.
Queria ceder; mas o temperamento meridional, ardente, arrebatava-o e retorquia:
  • - Era mister que ele se fosse purificar derramando o sangue dos infiéis em combate leal e perigoso, ele que só na guerra entre cristãos ganhara as suas palmas de vitória.
- Podia, objectava a Rainha, perder num lance arriscado toda a glória e fama, que em sua vida conquistara.
E o Rei com as mesmas razões de purificar-se, combatendo os inimigos da religião de Cristo, retorquia sempre. E D. Filipa piedosa como era, numa época tão característica do valor bélico, sentiu a alma retrair-se ao lembrarem-lhe o serviço de Deus. Talvez que no seu íntimo suave desabrochasse o pensamento que nenhum serviço podia a Deus prestar a guerra, bem antagónica da ideia de paz e de amor universal que da ‘Essência Divina Dimana’, talvez, mas esse pensamento guardou-o ela, timidamente. João I não insistiu com a esposa e resolveu adiar a sua decisão. Falaria ao Condestável; esse era um oráculo; grave e solene ia já penetrando em vida no templo glorioso que os louvores póstumos erigem. Ele diria da expedição o que a sua grande alma parecesse bem. Era considerado um santo; tinha uma serenidade de quem se desprende das ambições do mundo, a pouco e pouco, gostosamente. Resolveu el rei falar-lhe. Não o chamaria à corte; isso dava nas vistas; comentar-se-ia de variados modos o caso; o povo imaginar-se-ia em vésperas de algum rompimento lá das bandas de Castela de onde a sanha dos vencidos era ainda mal represada.
E João I queria que todos os preparativos do cometimento fossem discretamente conduzidos. Estavam em Santarém e então o rei combinou com os infantes uma certa caçada, em que se reuniriam num ponto onde fosse fácil encontrarem-se com Nun'Alvares. Os infantes Duarte e Henrique partiram pois um dia, com monteiros e falcoeiros, em direcção às terras de Arraiolos. Andaram por lá a montear, dois meses a mais que não menos; e ao fim desse tempo o rei disse um dia ao infante Pedro:
  • - Filho, apesar de velho ainda posso galgar os montes e bater os matagais a perseguir os javardos. Teus irmãos lá andam em sua folgança de montear. Vamos também reunirmo-nos com eles; seguiremos a ribeira de Mugem; nessa direcção encontrá-los-emos.
Assim fizeram, e passando a seguir a margem da ribeira de Sor, chegaram às proximidades de Coruche. Então disse o rei para os do séquito:
  • - Os meus lebréus estão cansados; não podem com a montaria sós, carecem do incentivo de outros bem folgados. Ide pois procurar aí por essas devesas algum solar de nobre que tenha seus lebréus e mos empreste.
Lembraram o Condestável, e o rei apoiou, sorrindo. Mas esse sorriso só o compreendeu o Infante Pedro (28)». In Alfredo Alves, D. Henrique o Infante, Typografia do Commercio do Porto, 1894G 286, H5A53, Porto.

Cortesia de Typografia do Commercio do Porto, 1894/JDACT