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Os
outros, "os que não têm baixa a fantasia", só podem evitar os golpes da Fortuna,
achando-se num estado semelhante ao de Trasiláo
De um
certo Trasiláo se lê e escreve.
Entre
as cousas da velha antiguidade,
Que perdido
grão tempo o siso teve,
Por causa
d'uma grave infermidade.
E, emquanto
de si fora doudo esteve,
Tinha
por teima e cria por verdade
Que
eram suas, das naus que navegavam,
Quantas
no porto Pireu ancoravam.
Por um
senhor mui grande se teria,
Além da
vida alegre que passava,
Pois nas
que se perdiam não perdia,
E das
que vinham salvas se alegrava.
Não tardou
muito tempo quando um dia
Um grito,
seu irmão, que ausente estava,
À terra
chega, e, vendo o irmão perdido,
Do fraternal
amor foi commovido.
Aos médicos
o entrega e com aviso
O faz
estar á cura refusada.
Triste!
que, por tomar-lhe o antigo siso,
Lhe tira
a doce vida descansada.
As hervas
Apollineas de improviso
O tornam
á saúde já passada.
Sisudo,
Trasiláo ao caro irmão
Agradece
a vontade, a obra não.
Porque,
despois de ver-se no perigo
Do trabalho
a que o siso o obrigava,
E despois
de não ver o estado antigo,
Que a
louca presumpção lhe apresentava,
— Oh inimigo
irmão, com cor de amigo,
Para
que me tiraste (suspirava)
Da mais
quieta vida e livre em tudo,
Que nunca
pôde ter nenhum sisudo?
Por qual
senhor algum eu me trocara,
Ou por
qual algum rei de mais grandeza?
Que me
dava que o mundo se acabara,
Ou que
a ordem mudasse a natureza?
Agora
me é penosa a vida cara;
Sei que
cousa é trabalho e que é tristeza.
Torna-me
a meu estado, que eu te aviso
Que na
doudice só consiste o siso. —
E o
poeta prossegue:
Vedes
aqui, senhor, bem claramente
Como a
Fortuna em todos tem poder,
Senão
só no que menos sabe e sente,
Em quem
nenhum desejo pode haver.
Este se
pode rir da cega gente;
Neste
não pode nada acontecer;
Nem estará
suspenso da balança
Do temor
mau, da pérfida esperança.
Vamos
agora entrar na parte capital da epístola. Qual dos dois meios de escapar aos golpes
da Fortuna prefere o poeta?
Dadas
certas condições, não pediria:
Do insano
Trasiláo o doudo estado.
E essas
condições são as seguintes: Ver terminado o exilio; viver modestamente, entregue
às musas; cultivar a amizade da pessoa a quem a epístola é endereçada; deliciar-se
com as obras de determinados poetas e, finalmente, se não principalmente, ter ao
pé de si “a menina dos olhos verdes”.
Mas, se
o sereno ceu me concedera
Qualquer
quieto, humilde e doce estado,
Onde
com minhas musas só vivera,
Sem ver-me
em terra alhea degradado;
E alli
outrem ninguém me conhecera,
Nem eu
conhecera outrem mais honrado,
Senão
a vós, também como eu contente,
Que bem
sei que o serieis facilmente;
E ao
longo duma clara e pura fonte,
Que, em
borbulhas nascendo, convidasse
Ao doce
passarinho, que nos conte
Quem da
cara consorte o apartasse,
Despois,
cobrindo a neve o verde monte,
Ao gasalhado
o trio nos levasse,
Avivando
o juizo ao doce estudo,
Mais certo
manjar da alma emfim que tudo.
Cantára-nos
aquelle, que tão claro
O fez
o fogo da arvore Phebêa,
A qual
elle em estylo grande e raro
Louvando,
o crystallino Sorga enfrêa;
Tangera-nos
na frauta Sanazaro,
Ora nos
montes, ora por a arêa;
Passara,
celebrando o Tejo ufano,
O doce
e brando Lasso castelhano;
E comnosco
também se achara aquella,
Cuja lembrança
e cujo claro gesto
Na alma
somente vejo, porque nella
Está em
essência puro e manifesto,
Por alta
influição de minha estrella,
Mitigando
o rigor do peito honesto,
Entretecendo
rosas nos cabellos,
De que
tomasse a luz o sol em vê-los;
E, emquanto
por verão flores colhesse.
Ou por
inverno, ao fogo accommodado,
O que
de mi sentira nos dissesse,
De puro
amor o peito salteado,
— Não
pedira eu então que Amor me desse
Do insano
Trasiláo o doudo estado,
Mas que
alli me dobrasse o intendimento,
Por ter
de tanto bem conhecimento.
Esboçado,
porém, este programa, o poeta pergunta:
Mas por
onde me leva a phantasia?
Porque
imagino em bem-aventuranças,
Se tão
longe a Fortuna me desvia.
Que inda
me não consente as esperanças?
Se um
novo pensamento Amor me cria,
Onde o
lugar, o tempo, as esquivanças,
Do bem
me fazem tão desamparado,
Que não
pôde ser mais que imaginado?
E Camões,
depois de se queixar da Fortuna e do Amor, que contra ele se conjuraram, conclui
por esta forma:
O tempo
a tal estado me chegou
E nelle
quis que a vida se acabasse,
Se ha
em mim acabar-se, o que não creio,
Que até
da muita vida me receio.
Foram
também escritas nesta fase as seguintes redondilhas, tão repassadas de resignada
melancolia (145)».
In
José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64
1910 C1 Robarts/.
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