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NOTA: Texto na versão original.
A Infanta D. Maria
«E agora, que sabemos dos estudos e passatempos da filha de
D. Manoel? das artes que cultivou? dos lavores de sua mão? do viver no seu paço?
do circulo de damas nobres e donzellas eruditas que constituiam a sua côrte e imitavam
o seu exemplo? dos poetas e sabios, seus protegidos? das obras que lhe foram
dedicadas ou de que foi inspiradora? dos institutos de educação que fomentou?
Mais alguma coisa, felizmente, do que da famigerada “Escola
de Sagres”, embora as notas soltas que foi preciso colher em muitas e diversas
obras, nem mesmo a este respeito elucidem quanto seria para desejar.
Os coevos pintaram a sua casa como domicilio das Musas e
universidade feminina, já o deixei dito a principio deste estudo. O biographo e
os auctores feministas dos seculos XVII e XVIII forçam a nota, desenhando-a
antes como um mosteiro reformado que podia a religiosas ser espelho e doutrina
de bem-viver. Os modernos que se occupam de sciencias, artes e letras, seguem o
exemplo do phantasioso polygrapho Manuel de Faria Sousa, e consideram o seu
pequeno reino litterario como verdadeira corte de amor e gaia sciencia, comquanto,
não podendo contradizer em absoluto os antecessores e para afugentar sombras,
medos e horrores feministas, também ajuntem sempre, à cautela e com justo
motivo, ao titulo de “Academia da Infanta” o subtitulo: escola de virtudes e
honestidade.
Só estes fallam de “Serões da Infanta”, dando por provado
que toda a pleiada camoniana se reunia constantemente em volta de D. Maria, no
paço independente onde os monarcas a haviam instalado, mal chegou a completar
dezaseis annos. Segundo eles, foi ahi em uma constellação de intelligentissimas
bellezas que o cantor dos Lusiadas encontrou as suas Tagides, e se desenrolaram
parte das desgraças e venturas da sua juventude, assim como outros successos
notorios, alegres e tristes, da vida amorosa de vates palacianos. O intuito artistico de altear a estatua da Infanta, de fazer
della a personificação feminina mais brilhante da cultura classica, e de pôr em
contraste os seus dotes liberaes com o obscurantismo dos protectores da
Inquisição (maldita) e do Jesuitismo, levou-os a proceder com alguma
arbitrariedade. Exagerando, e muito, de um lado a austeridade dos costumes e o
rigor do regimen repressivo que vigorava no paço real, e do outro lado a
liberdade e o esplendor mundano da Infanta, pintam João III e a Rainha D.
Catharina como completamente faltos de intelligencia e saber, sombrios,
antagonicos às artes e a divertimentos, gastando os seus dias em novenas,
ladainhas e autos da fé; e transformam a Infanta que na verdade foi mais seria do
que graciosa, mais erudita do que artista, e devota como os reinantes, de
formosa Pallas-Atheneia em jucunda Venus, ou Musagete feminina. Tentarei restabelecer a verdade, que fica, a meu vêr a
meio-caminho, como de costume.
“Os Estudos da Infanta”.- É thema não menos controvertido
do que o dos “Serões”.
Segundo uns, D. Maria de Portugal fôra de uma precocidade e intelligencia
pasmosa. Lições de mestres e leituras proprias haviam-lhe aberto um horizonte
amplissimo. Todos os auctores classicos lhe eram familiares. Quasi brincando penetrara
os mais reconditos segredos da erudição. Fallava e escrevia a lingua latina
perfeitamente bem, não só com fluencia e correcção, mas até com graça e
singular elegancia, tal qual sua lingua materna, como se todo o mundo, então e
sempre, soubesse bem a sua lingua materna! Em segredo, muito em segredo,
redigia obras volumosas nos dois idiomas mortos. Do seu enthusiasmo pela litteratura
patria dava provas diarias, estimulando e recompensando a actividade dos
melhores auctores.
Segundo outros, que já conhecemos, foi apenas para poder
rezar com entendimento os officios divinos que se dedicara ao estudo. Os
volumes manuseados dia e noite, eram a Escritura e outros textos sacros. Assim
o havia declarado, em vida da Infanta, a voz apparentemente auctorisada de um
varão esclarecido, o verídico auctor das “Decadas”.
Quem terá razão? Não a dou a João de Barros, que sempre foi fraco erasmista, mesmo no tratado da “Mercadoria
Espiritual”, porque depois de l550 o douto escritor fez-se porta voz da
orthodoxa reacção tridentina. Na propria peça rhetorica a que alludo, um
extenso Panegyrico das qualidades da Infanta, vemos desmentida a tendenciosa
insinuação: tão variado é o saber que presuppõe; tantas são as allusões
mythologicas, historicas e linguisticas, tantas as hyperboles com que a festeja.
Identificando a era da Infanta com a idade aurea, e as suas damas e donzellas
com a nova geração dos Übermenschen (“Sobre-homens ou Supra-homens”), profetizada
pela sibylla, adianta-se mesmo até aplicar-lhe os versos de Vergilio:
jam redit et virgo; redeunt saturnia regna;
jam nova progénies coelodimittitur alto.
Não é, porém, nestes exageros que devemos fiar-nos, mas sim na
consentanëidade de outros coevos mais sabios e menos rigoristas, que gabaram
com insistencia o caracter, o bom-senso, os sólidos conhecimentos da Infanta».
In
Carolina Michaelis de Vasconcelos, Infanta D. Maria
de Portugal (1521-1577) e as suas Damas, edição fac-similada, Biblioteca
Nacional, Lisboa, 1994, ISBN 972-565-198-7.
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