(1923-1985)
Cuba
esthercalvino e jdact
Forasteiro em Turim
«Turineses de adopção, no campo cla literatura, não creio que sejamos muitos.
Milaneses de adopção conheço uma data deles, aposto: são a quase totalidade dos
literatos de Milão!; os romanos de adopção continuam a crescer; os florentinos
de adopção, menos que dantes, mas também os há; em Turim, em contrapartida,
dir-se-ia que é preciso ter lá nascido, ou ter afluído dos vales do Piemonte com
o movimento natural dos rios que desaguam mo Po. Para mim, afinal, Turim foi
precisamente objecto de uma opção. Sou de uma terra, a Ligúria, que de tradição
literária só tem fragmentos ou alusões, de modo que todos podem, grande sorte!,
descobrir ou inventar uma tradição por sua própria conta, de uma terra que não
tem una capital literária bem definida, de modo que o literato lígure, ave rara,
na verdade, é também ave migratória.
Turim, para me atrair, teve certas virtudes não diferentes das da minha
gente, e minhas favoritas: a falta de espumas românticas, o confiar sobretudo
no seu próprio trabalho, uma esquiva desconfiança nativa, e para mais o sentimento
seguro de fazer parte do vasto mundo que se move e não só da província fechada
sobre si mesma, o prazer de viver temperado de ironia, e a inteligência
esclarecida e racional. Foi portanto uma imagem moral e civil, e não literária,
de Turim que me atraiu. Era o apelo daquela cidade de trinta anos antes, que
outro turinês ‘de adopção’, o sardo Gramsei, havia identificado e suscitado, e
que um turinês de pura tradição, Gobetti, definira em certas páginas suas ainda
hoje tão estimulantes. A Turim dos operários revolucionários que já no primeiro
pós-guerra se organizavam como classe dirigente, a Turim dos intelectuais antifascistas
que não se baixaram ao compromisso. Esta Turim ainda existe? Faz-se sentir na realidade
de hoje? Creio que ela tem a virtude de conservar a sua força como um fogo
debaixo das cinzas, e que continua a estar viva mesmo quando menos parece. A
minha Turim literária identificou-se sobretudo com uma pessoa, com quem tive a
sorte de estar durante alguns anos e que demasiado cedo me faltou: um homem de
quem agora se escreve muito, e com frequência de tal maneira que só a custo se
consegue reconhecê-lo. A verdade é que não bastam os seus livros para devolver
uma completa imagem de si: porque dele era fundamental o exemplo de trabalho, o
ver como a cultura do literato e a sensibilidade do poeta se transformavam em
trabalho produtivo, em valores postos à disposição do próximo, em organização e
comércio de ideias, em prática e escola de todas as técnicas em que consiste
uma civilização cultural moderna.
Falo de Cesare Pavese. E posso dizer que para mim, tal como para outros
que o conheceram e com ele conviveram, o ensinamento de Turim coincidiu em
grande parte com o ensinamento de Pavese. A minha vida turinesa traz toda a sua
marca; cada página que eu escrevia era ele o primeiro a lê-la; um ofício foi ele
que mo deu introduzindo-me nessa actividade cultural pela qual Turim é hoje ainda
um centro de importância mais que nacional; foi ele, por fim, que me ensinou a
ver a sua cidade, a saborear as suas subtis belezas, passeando pelos corsos e
pelas colinas.
Aqui deveria mudar de assunto e dizer como com esta
paisagem um forasteiro como eu se consegue harmonizar; como me sinto, peixe de
rochedo e ave da floresta transplantado para o meio destes pórticos, a farejar os
nevoeiros e os algores subalpinos. Mas seria uma longa conversa. Seria preciso
tentar definir um secreto jogo de motivos que liga a despida geometria destas
ruas quadriculadas à despida geometria dos muros secos dos meus campos. E a
relação muito especial entre a civilização e a natureza em Turim: é tal que um
reverdecer de folhas nos corsos, um brilhozinho no Po, a cordial vizinhança da
colina, bastam para reabrir de repente o coração a paisagens não esquecidas,
para recolocar o homem em confronto com o mundo natural mais vasto, para nos
dar de volta, para sermos breves, o sabor de estarmos vivos». In Italo Calvino,
Um remita em Paris, Editorial Teorema, 1990, ISBN 972-695-265-4.
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