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«Mas vemos, ao mesmo tempo, que a escrita se apura da 1.ª para a 2.ª
parte; e onde, no primeiro livro, há ainda um peso da retórica moralista e da
formação religiosa, a 2.ª dá-nos uma abertura para o mundo profano, usando o
expediente camoniano do paralelo com a mitologia. O seu interesse por Virgílio reflecte
um gosto comum a outros contemporâneos seus: João Franco Barreto, nascido em
1600, traduz a ‘Eneida’, publicada em duas partes em 1664 e 1670. Barreto foi
presbítero na vila do Redondo até 1648, não sendo impossível que se tenham encontrado
ou ao menos ouvido falar um do outro, dada a proximidade em que o Redondo se
encontrava de Castro Verde. Também na pintura os motivos da guerra de Tróia são
amplamente utilizados na época, como se pode ver nos quadros de um outro seu
contemporâneo, Diogo Pereira (morto em 1658).Tudo isto resulta, assim, numa
irrupção esplêndida da Antiguidade como fonte de inspiração para os episódios que
ganham em força trágica e em originalidade. Este lado ‘antigo’, é visível
também no gosto pelas ruínas. A ruína não é, porém, um simples cenário de
destruição, mas um espelho de ensinamento em que, no processo descritivo, é
apresentada uma herança que se manifesta na mensagem alegórica das figuras que
se distribuem pelo espaço arquitectónico. Há, por isso, uma recuperação do
passado em todas as suas vertentes, desde os Gentios aos pagãos, dando uma
abertura em que se manifesta o humanista, contrariando o peso censório da
Igreja pós-tridentina.
Todos estes aspectos fazem de Gaspar Pires Rebelo um dos grandes
autores da Língua Portuguesa, em particular no brilho com que domina a
subtileza conceptual, equilibrando-a de forma articulada, num sábio jogo de luz
e sombra, com a arte de contar. Podemos, por isso, dizer sem qualquer receio de
exagero que ele é, no plano Ja literatura de imaginação, o equivalente ao Padre
António Vieira (e, tal como Vieira, Rebelo é referido como um dos grandes
pregadores religiosos do seu tempo, o que se pode comprovar pela prática que o
Ermitão faz a Leandro no capítulo XXVII da Primeira parte).
Perguntar-se-á por que motivo não consta o seu nome, em geral, das
nossas histórias literárias, a não ser como quase minúscula referência de rodapé?
Duas razões se podem apontar, para lá do nosso desleixo crónico em relação ao
passado:
- o facto de ter vivido sob o período filipino;
- sobretudo a sua inscrição na prosa de ficção barroca, tão desconsiderada como simples jogo formal.
Vive, além disso, num período que Francisco Rodrigues Lobo caracterizou
como sendo de ‘corte na aldeia’. A perda da independência, e o facto de nenhum
dos Filipes se ter instalado em Lisboa, vai desenvolver esses núcleos regionais
de vida cultural em torno de famílias nobres, o marquês de Vila Real, em
Leiria, onde vive Rodrigues Lobo, o duque de Bragança em Vila Viçosa, entre muitos
outros, não sendo de excluir que Pires Rebelo tivesse frequentado ou fosse o
centro de um desses círculos.
É ele, porém, um dos nossos autores em que de modo mais claro e,
poderemos dizê-lo, consciente, se encontra a marca deste nosso século barroco,
vigente de 1580 a 1680 no mundo hispânico, segundo Fernando de la Flor, com as
suas duas características nucleares que são a ‘determinação niilista’ e ‘uma arte
e uma literatura da caducidade’. Com efeito, é no ‘teatro da morte’, que é o
cadafalso erguido para a execução de Florinda e Arnaldo, que termina o
esplendor da aventura amorosa; e é nesse instante, em que chegou ao fim a
aventura trágica, que a ‘malencolia’ atinge o seu auge na desencantada
constatação final de Arnaldo de que ‘não tem fundamento a seguridade dos bens
do mundo’». In Infortúnios Trágicos da Constante Florinda, Nuno Júdice,
Teorema, Lisboa, 2005, Fundação C. Gulbenkian, HALP, 2005.
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