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«Andava então o mundo transtornado.
Com a morte do imperador Henrique VII (1308-14) viera o crisma dos eleitores, e
dois imperadores a disputarem a terra : o duque de Áustria, Frederico III, e o da
Baviera, Ludovico Pio. A Itália ardia em guerra. Em França morrera Filipe “o belo”
(1285-1314), ao que se dizia vítima da sua guerra aos Templários. No céu
tinham-se visto três luas, e um grande cometa durante três meses. Em 1315 choveu
o ano inteiro, sem cessar. A Áustria e a Bohemia andavam assoladas por
heresias; a Alemanha, o Brabante, a Polónia e a Inglaterra, por fomes e pestes.
Clemente V (1305-16) mudara o papado de Roma para Avinhão (1309) e extinguira a
ordem dos Templários (1312), ré de tantos crimes. Mas quando o deão do Porto
chegou a Avinhão, já o papa tinha morrido, ficando mais dum ano vago o sólio
pontifício. O bispo do Porto teve de sair; conseguindo, porém, ser transferido
pelo papa João XXII (1317-34) para Lisboa, onde continuou a administrar os bens
do Templo em Portugal, até que, em 1320, o rei Diniz fundou com eles a ordem de
Cristo. O deão estava vingado, mas o ódio do bispo Gonçalo não estava satisfeito.
Embora o papa lhe
tivesse dado a mitra de Leão, antes de lhe dar o arcebispado de Braga, Gonçalo,
que durante dois anos ficou em Avinhão, perseguiu o bispo fr. Estevam, até que o
expulsou de Lisboa para Cuenca. Foi sempre assim o ódio eclesiástico. E Gonçalo,
o prelado quase omnipotente, era também um politico audaz e hábil.
Esteve na batalha de Loures,
entre el-rei Dinis e o infante Afonso; interveio para a reconciliação do pai com
o filho; e foi quem, sendo este já rei, celebrou as pazes com Afonso “o bom” de
Castela (1312-50), o que tomou Algezira aos mouros, em 1344.
Tal era o sangue que girava
nas veias do pai de Nun'alvares.
E esse sangue ardente
vinha em ebulição desde Rodrigo Gonçalves, de Pereira, por via do avô do arcebispo,
Pêro Rodrigues, o que casou com Estevaninha Ermigia da Teixeira, e matou na lide
seu primo Pêro Poiares. Rodrigo Gonçalves e seus irmãos, Gonçalo, fundador de Nandim,
e Elvira, da Palmeira, descendiam da casa de Cella-nova, transmontanos cruzados
de sangue leonez. A história deste avô contava-se na família, como exemplar do génio
cruelmente justiceiro. Casara com Ignez Sanchez e, deixando-a no castelo de Lanhoso,
soube como ela aí fazia maldade com um frade de Bouro. Rodrigo Gonçalves foi lá
em armas, cercou o castelo, e pondo-lhe fogo, fez arder na mesma fogueira a mulher
e o frade, e a mais gente, com as bestas, os cães, e tudo quanto havia dentro, para
que a chama consumisse por completo os sacrílegos e a desonra.
Não faltavam, portanto, sementes
de força bravia na ascendência de Nun'Alvares, que vinha ao mundo temperado por
três gerações de tal gente. O pai nascera quando o bispo
Gonçalo ainda não era deão,
nem até clérigo: foi nos estudos, em Salamanca, que o futuro arcebispo de Braga
“filhou”. Tareja Pires Villarinho,
e o fez nela. O pai meteu-o quase criança no Hospital, cujo mestre era seu tio avô
Estevam Vasques Pimentel, irmão da mãe do arcebispo, Urraca Vasques, da casa
dos Pimenteis, casada com o conde de Trastamara Gonçalo Pereira, de quem o filho
tirou o nome. Cresceu fr. Álvaro sob o patrocínio do tio, e quando este morreu,
tinha o rapaz dezoito anos, sucedeu-lhe no priorado da ordem, cuja sede era o Crato.
Governando, pois, a ordem
do Hospital desde largos anos, tornara-a como que apanágio da sua família, tanto
lhe aumentara o poder e a riqueza. As cruzes floreteadas do seu brazão viam-se esculpidas
num sem número de castelos.
Tinha construído o da Amieira,
forte e mui formoso; os paços do Bomjardim, junto à sua vila da Sertã; a igreja
de Santa Maria, em que Deus fazia muitos milagres; e além de outras numerosas obras,
rematava o castelo da Flôr-da-Rosa, o seu mosteiro e igreja, povoando o lugar com
colonos adscritos. Da ordem fundada em 1110 por Gérard de Martigue para a Cruzada,
havia em cada nação, ou “lingoa”, um prior, balios e comendadores. Havia as “lingoas”
da Provença, do Arverno, de França ou de Paris, da Itália, do Aragão, da Alemanha,
e de Castela e Portugal.
O grão-mestre, a quem se chamava eminência, governava
a ordem superiormente a todas as “lingoas” enquanto ela manteve o seu carácter
cosmopolita, ou internacional. O comendador-mor era o “pilar da lingoa” da Provença;
o marechal, o “pilar do Arverno”, o hospitalário, o da França; o almirante, o da
Itália;, o conservador-mor, o do Aragão; o balio-mor, o da Inglaterra; e finalmente
o de Castela, ao qual primitivamente andava sujeita a “lingoa portuguesa”, era
o chanceler-mor da ordem. Por todo o mundo, os monges cavaleiros do Hospital,
regrantes de Santo Agostinho, levavam em tempo de paz, o seu manto negro com a cruz
de ouro de oito pontas, sobre o lado, e outra cruz sobre o peito. Em todas as batalhas
aparecia nas armaduras a grande cruz branca da ordem, e o pendão com as armas: guelas
escarlates e cruzes de prata. Eram a milícia de Cristo: um dos vários exércitos
monásticos, em que o cosmopolitismo europeu se definiu primeiro, sob o influxo da
religião, para o resgate da Terra-Santa, onde padecera Cristo». In Oliveira Martins, A
Vida de Nun'Alvares, História do estabelecimento da dinastia de Avis,
LIvraria de António Maria Pereira, Editor, 1893.
Cortesia de
Makew Parr Collection/Magellan and the Age of Discovery/Presented to Brandies
University, 1961/JDACT