sexta-feira, 4 de maio de 2012

A Vida de Nun'Alvares. Oliveira Martins. «Não faltavam, portanto, sementes de força bravia na ascendência de Nun'Alvares, que vinha ao mundo temperado por três gerações de tal gente. O pai nascera quando o bispo Gonçalo ainda não era deão, nem até clérigo: foi nos estudos, em Salamanca, que o futuro arcebispo de Braga “filhou”»



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«Andava então o mundo transtornado. Com a morte do imperador Henrique VII (1308-14) viera o crisma dos eleitores, e dois imperadores a disputarem a terra : o duque de Áustria, Frederico III, e o da Baviera, Ludovico Pio. A Itália ardia em guerra. Em França morrera Filipe “o belo” (1285-1314), ao que se dizia vítima da sua guerra aos Templários. No céu tinham-se visto três luas, e um grande cometa durante três meses. Em 1315 choveu o ano inteiro, sem cessar. A Áustria e a Bohemia andavam assoladas por heresias; a Alemanha, o Brabante, a Polónia e a Inglaterra, por fomes e pestes. Clemente V (1305-16) mudara o papado de Roma para Avinhão (1309) e extinguira a ordem dos Templários (1312), ré de tantos crimes. Mas quando o deão do Porto chegou a Avinhão, já o papa tinha morrido, ficando mais dum ano vago o sólio pontifício. O bispo do Porto teve de sair; conseguindo, porém, ser transferido pelo papa João XXII (1317-34) para Lisboa, onde continuou a administrar os bens do Templo em Portugal, até que, em 1320, o rei Diniz fundou com eles a ordem de Cristo. O deão estava vingado, mas o ódio do bispo Gonçalo não estava satisfeito.
Embora o papa lhe tivesse dado a mitra de Leão, antes de lhe dar o arcebispado de Braga, Gonçalo, que durante dois anos ficou em Avinhão, perseguiu o bispo fr. Estevam, até que o expulsou de Lisboa para Cuenca. Foi sempre assim o ódio eclesiástico. E Gonçalo, o prelado quase omnipotente, era também um politico audaz e hábil.
Esteve na batalha de Loures, entre el-rei Dinis e o infante Afonso; interveio para a reconciliação do pai com o filho; e foi quem, sendo este já rei, celebrou as pazes com Afonso “o bom” de Castela (1312-50), o que tomou Algezira aos mouros, em 1344.
Tal era o sangue que girava nas veias do pai de Nun'alvares.
E esse sangue ardente vinha em ebulição desde Rodrigo Gonçalves, de Pereira, por via do avô do arcebispo, Pêro Rodrigues, o que casou com Estevaninha Ermigia da Teixeira, e matou na lide seu primo Pêro Poiares. Rodrigo Gonçalves e seus irmãos, Gonçalo, fundador de Nandim, e Elvira, da Palmeira, descendiam da casa de Cella-nova, transmontanos cruzados de sangue leonez. A história deste avô contava-se na família, como exemplar do génio cruelmente justiceiro. Casara com Ignez Sanchez e, deixando-a no castelo de Lanhoso, soube como ela aí fazia maldade com um frade de Bouro. Rodrigo Gonçalves foi lá em armas, cercou o castelo, e pondo-lhe fogo, fez arder na mesma fogueira a mulher e o frade, e a mais gente, com as bestas, os cães, e tudo quanto havia dentro, para que a chama consumisse por completo os sacrílegos e a desonra.
Não faltavam, portanto, sementes de força bravia na ascendência de Nun'Alvares, que vinha ao mundo temperado por três gerações de tal gente. O pai nascera quando o bispo
Gonçalo ainda não era deão, nem até clérigo: foi nos estudos, em Salamanca, que o futuro arcebispo de Braga “filhou”. Tareja Pires Villarinho, e o fez nela. O pai meteu-o quase criança no Hospital, cujo mestre era seu tio avô Estevam Vasques Pimentel, irmão da mãe do arcebispo, Urraca Vasques, da casa dos Pimenteis, casada com o conde de Trastamara Gonçalo Pereira, de quem o filho tirou o nome. Cresceu fr. Álvaro sob o patrocínio do tio, e quando este morreu, tinha o rapaz dezoito anos, sucedeu-lhe no priorado da ordem, cuja sede era o Crato.
Governando, pois, a ordem do Hospital desde largos anos, tornara-a como que apanágio da sua família, tanto lhe aumentara o poder e a riqueza. As cruzes floreteadas do seu brazão viam-se esculpidas num sem número de castelos.
Tinha construído o da Amieira, forte e mui formoso; os paços do Bomjardim, junto à sua vila da Sertã; a igreja de Santa Maria, em que Deus fazia muitos milagres; e além de outras numerosas obras, rematava o castelo da Flôr-da-Rosa, o seu mosteiro e igreja, povoando o lugar com colonos adscritos. Da ordem fundada em 1110 por Gérard de Martigue para a Cruzada, havia em cada nação, ou “lingoa”, um prior, balios e comendadores. Havia as “lingoas” da Provença, do Arverno, de França ou de Paris, da Itália, do Aragão, da Alemanha, e de Castela e Portugal.
O grão-mestre, a quem se chamava eminência, governava a ordem superiormente a todas as “lingoas” enquanto ela manteve o seu carácter cosmopolita, ou internacional. O comendador-mor era o “pilar da lingoa” da Provença; o marechal, o “pilar do Arverno”, o hospitalário, o da França; o almirante, o da Itália;, o conservador-mor, o do Aragão; o balio-mor, o da Inglaterra; e finalmente o de Castela, ao qual primitivamente andava sujeita a “lingoa portuguesa”, era o chanceler-mor da ordem. Por todo o mundo, os monges cavaleiros do Hospital, regrantes de Santo Agostinho, levavam em tempo de paz, o seu manto negro com a cruz de ouro de oito pontas, sobre o lado, e outra cruz sobre o peito. Em todas as batalhas aparecia nas armaduras a grande cruz branca da ordem, e o pendão com as armas: guelas escarlates e cruzes de prata. Eram a milícia de Cristo: um dos vários exércitos monásticos, em que o cosmopolitismo europeu se definiu primeiro, sob o influxo da religião, para o resgate da Terra-Santa, onde padecera Cristo». In Oliveira Martins, A Vida de Nun'Alvares, História do estabelecimento da dinastia de Avis, LIvraria de António Maria Pereira, Editor, 1893.


Cortesia de Makew Parr Collection/Magellan and the Age of Discovery/Presented to Brandies University, 1961/JDACT