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«Quando em 1640, João,
duque de Bragança, foi aclamado rei perfazia quase século e meio desde que
Manuel I tinha imposto aos judeus o baptismo, promulgando, paralelamente, um
conjunto de medidas legislativas, com vista a efectivar a sua integração na maioria
cristã, uma vez que até então aqueles tinham constituído um corpo autónomo. Do
ponto de vista político e social a política de integração manuelina, ao pôr fim
a distinções onomásticas, de vestuário, à marginalização física e
possibilitando à ex-minoria judaica o acesso a sectores da sociedade civil e
eclesiástica que, no passado, as leis canónicas e as ordenações gerais do reino
lhe tinham vedado, poderia ter-se saldado por um resultado positivo. Porém, não
tardou que a sociedade cristã-velha Quinhentista, em geral, tivesse passado a encarar
o recém-convertido como uma ameaça aos seus interesses estabelecidos.
Iniciou-se, então, um
processo de combate à abertura que a política do monarca Manuel I havia
proporcionado, luta que aliás não foi abandonada nas centúrias seguintes e durante
a qual se recorreu a mecanismos como os dos estatutos de limpeza de sangue, a
partir dos finais da década de 1560, embora sem que se tivesse conseguido
alcançar, em termos práticos, os resultados pretendidos. José S. da Silva Dias
compreendeu bem este fenómeno, quando afirmou que “O preconceito anti-judaico
(...) é, antes (...) a face exterior e militante do instinto de defesa, contra
o risco que o poderio e contumácia da ‘nação’ fazia correr à ideologia católica
e à suserania política da massa indígena”.
Todavia, o principal
insucesso da política de integração delineada por Manuel I residiu no facto de
a tentativa de fusão da ex-minoria judaica com a maioria cristã-velha, no plano
religioso, se ter saldado por um malogro. Frequentemente, os cristãos-novos
foram acusados de a sua conversão ser apenas aparente e de no íntimo permanecerem
judeus, recaindo, pois, sobre eles a acusação de hereges, que alguns anos mais
tarde a Inquisição (maldita) se esforçou por “reencaminhar” ao seio da igreja católica.
Assim, em resultado de
factores de ordem externa, que se traduziram na rejeição dos recém convertidos
por parte da sociedade, mas também como forma de assegurarem a sua própria
sobrevivência, a gente de nação fechou-se à integração plena na
sociedade cristã Quinhentista. Ofereciam resistência a essa mesma política e, por
isso, “Casavam entre si com ou sem autorização real; habitavam na antiga
judiaria, mantinham os seus costumes e tradições religiosas (...)”, procurando,
deste modo, preservar os traços identificadores de uma cultura própria.
Na verdade, o factor
religioso tem sido aquele a que a maior parte dos autores tem atendido para
procurar demonstrar até que ponto os cristãos-novos se mantiveram, ou não,
fiéis à herança dos seus antepassados, facto que se revelava da maior importância
na preservação da referida identidade. Era, aliás, com base nesse mesmo factor,
que se deveria avaliar o grau do eventual sucesso da integração dos cristãos-novos
na sociedade cristã. Alexandre Herculano foi o primeiro historiador a chamar a atenção
para esta questão considerando que os cristãos-novos, possivelmente, utilizaram
o cristianismo e as normas de conduta ditadas por ele como “capa”, aproveitando
as vantagens que o novo estatuto sócio-religioso lhes trazia, continuando, porém,
no íntimo arreigados à antiga religião. Embora na década de vinte do século passado
Lúcio de Azevedo tenha introduzido algumas alterações na forma de encarar o cristão-novo,
podemos afirmar que a ideia da duplicidade de vivências se manteve em algumas
comunidades e em alguns indivíduos.
No final da década de
sessenta, início da década de setenta, do século passado, a discussão em torno
desta questão reacendeu-se e António José Saraiva e I. S. Révah assumiram-se
como seus principais protagonistas. Assim, enquanto Saraiva rejeitou liminarmente
a hipótese de os cristãos-novos terem continuado a praticar o seu antigo culto
e de revelarem resistência à assimilação, o historiador francês afirmou, de
forma categórica, que o criptojudaísmo de numerosos cristãos-novos podia ser
comprovado.
NOTA: “Les marranes
portugais et l´Inquisition au XVIe siècle” in Éudes Portugaises, Paris, FCG/Centro
Cultural Português, 1975. A polémica entre o ensaísta e o historiador francês
sobre este assunto, bem como relativamente a outros que se prendiam com a
temática Inquisição/cristãos-novos, alimentou as páginas do Diário de Lisboa,
no início da década de setenta do século passado, e encontra-se reproduzida em Anexo
à obra Inquisição e cristãos-novos. Cf. António José Saraiva. Também
em Espanha, entre a década de quarenta e a de noventa do século passado, a
questão relacionada com a permanência, ou não, no judaísmo dos cristãos-novos
suscitou amplo debate. Historiadores como Y. Baer, H. Beinart ou Cecil Roth
defenderam que os cristãos-novos continuaram a seguir a lei mosaica enquanto
outros, como B. Netanyahu, expressaram uma opinião bem diferente afirmando,
inclusive, que quando, no reino vizinho, a Inquisição (maldita) foi
estabelecida os judeus já tinham abandonado o seu antigo culto. Cf. Pilar
Huerga Criado, “El problema de la comunidade judeoconversa”, in Historia de
la Inquisición en España y América. III - Temas y problemas, dir. Joaquín
Pérez Villanueva e Bartolomé Escandell Bonet, Madrid, Centro de Estudios
Inquisitoriales, 2000. (Biblioteca de Autores Cristianos).
Porém, no Portugal
Quinhentista, o judaísmo, na sua essência, deve ser entendido como fortemente
pautado por preceitos e obrigações que ultrapassavam o âmbito estritamente
religioso e moral, abarcando todos os aspectos da vida, individual, familiar e
colectiva. Atendendo a esta perspectiva, as provas da sua vitalidade foram
enormes.
NOTA: Os vários estudos
realizados até ao momento sobre diferentes núcleos populacionais de
cristãos-novos espalhados pelo território continental, que abordam o período
compreendido entre 1540 e a perda da independência, em 1580, permitiram
demonstrar que, mesmo após o estabelecimento da Inquisição (maldita) em
Portugal, os cristãos-novos procuraram, a todo o custo, preservar traços
fundamentais da sua identidade. A lista desses trabalhos é longa, razão pela
qual apontaremos apenas aqueles que consideramos mais relevantes: Maria José
Pimenta Ferro Tavares, “Para o estudo dos judeus de Trás-os-Montes, no século
XVI: a 1ª geração de cristãos novos”, separata da Revista Cultural Histórica
e Filosofia, vol. IV, Lisboa, FCSH-UNL, 1985; Maria do Carmo Teixeira Pinto
e Lucília Maria Luís Ferreira Runa, “Inquisição de Évora: dez anos de
funcionamento (1541-1550)” in Revista de História Económica e Social,
Lisboa, nº 22, 1988; Hermínia Vasconcelos Vilar, “A Inquisição do Porto:
actuação e funcionamento (1541-1542)” in Revista de História Económica e Social,
Lisboa, nº 21, 1988; Lucília Maria Luís Ferreira Runa, “O Santo Ofício de Évora
e a comunidade cristã-nova de Campo Maior (1560-1580)” in Arqueologia do
Estado: Ias Jornadas sobre formas de organização e exercício dos poderes na
Europa do Sul (séculos XIII-XVIII), Lisboa, História & Crítica, 1988;
Maria José Pimenta Ferro Tavares, “Judeus e cristãos novos, no distrito de
Portalegre” in A Cidade: Revista Cultural de Portalegre, Portalegre, nº
3 (nova série), 1989; Maria do Carmo Teixeira Pinto, “Manuel Dias, um cristão
novo de Fronteira e as vicissitudes do seu tempo” in Estudos Orientais. II
- O legado cultural de Judeus e Mouros, Lisboa, Instituto Oriental/Universidade
Nova de Lisboa, 1991; Maria do Carmo Teixeira Pinto e Lucília Maria Luís
Ferreira Runa “Comunidades cristãs-novas portuguesas no século XVI: reconstituição
de um quotidiano”, comunicação apresentada no encontro internacional O
Quotidiano na História Portuguesa, (Lisboa, FCSH - UNL, 1993); Lúcilia Runa
e Maria do Carmo Teixeira Pinto, “Vivências de uma comunidade cristã-nova no
século XVI: Castelo de Vide” in Patrimónia: Identidade, Ciências Sociais e
Fruição Cultural, Cascais, nº 3, 1997. A análise de algumas das visitas
inquisitoriais realizadas em território continental e insular durante a
centúria de Quinhentos vieram confirmar aquela realidade. Cf. Maria do Carmo
Teixeira Pinto, “Mecanismo de acção e controlo no espaço urbano: as visitas
inquisitoriais no século XVI e XVII” in A Cidade: Jornadas Inter e
Pluridisciplinares, Lisboa, Universidade Aberta, 1993.
Assim, pouco mais de
quatro décadas decorridas após o estabelecimento em Portugal da Inquisição,
alcançado com a Bula Cum ad nihil magis, datada de 23 de Maio de 1536,
os cristãos-novos residentes no reino, contrariamente ao que já foi afirmado,
continuavam a revelar um elevado grau de resistência à integração plena na
sociedade». In Maria do Carmo Teixeira Pinto Os Cristãos-Novos de Elvas no reinado
de D. João IV. Heróis ou Anti-Heróis?, Dissertação
de Doutoramento em História, Universidade Aberta, Lisboa, 2003.
Cortesia de U.
Aberta/JDACT