sábado, 2 de junho de 2012

Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus. António B. Coelho. «A importância social do comércio reflecte-se na protecção que a Lei Islâmica dispensava aos viajantes e na estrutura das cidades [...] no centro, ficava a rua mercantil, o ‘suk’, e, no meio do suk, a mesquita aljama ou maior, local de oração e reunião, tesouro pio e escola»



Cortesia de wikipedia

A Civilização Islâmica e o Gharb al-Ândalus
«A civilização islâmica que durante quinhentos anos se expandiu em boa parte do actual território português abria o Andaluz à margem sul do Mediterrâneo, ao Mali e ao Senegal, ao Próximo Oriente e daí ao Oriente Médio, à Pérsia, à Índia, à Indonésia, à China. Dito de outro modo, o Andaluz integrava-se no mundo descontínuo das viagens vividas e relatadas, um a dois séculos mais tarde, por Ibn Battuta.
Para o Próximo Oriente, as caravanas terrestres seguiam pela estrada norte-africana: Marrocos, Argel, Tunísia, Egipto. Demoravam dois a três meses. Aí começavam novas rotas orientais. A rota da seda unia a China ao Próximo Oriente. Atravessava os desfiladeiros do Pamir e seguia por Samarcanda e Bucara no Turquestão, por Hamadan na Pérsia. Em Bagdade bifurcava-se em dois braços: um alcançava Constantinopla e o Mediterrâneo; o outro, a Arábia e a África. Da Península Ibérica, os barcos partiam em comboio na Primavera e regressavam do Oriente no Outono.
No começo do século XII havia navegação directa de Sevilha ou de Almeria para Alexandria, navegações que dão razão às informações da Carta a Osberno sobre o comércio da Lisboa muçulmana.
No Velho Mundo, sem falar no Império do Meio, o Islão surgia como a construção mais dinâmica face a outros blocos com os quais tinha correspondência: o bloco de Bizâncio e o da Europa ocidental cristã. A correspondência não era só a das armas, mas a do comércio, a da importação de homens, de ideias, de técnicas, de plantas e animais e, no caso de Bizâncio, de livros e de artigos preciosos.
O movimento de difusão cultural seguia o curso do comércio. O Irão, onde antes se implantara o Império Sassânida, revelar-se-ia como um alfobre neste mundo medieval islâmico. A sua influência fez-se sentir no comércio, nas técnicas, nas ciências, na farmácia, na arte, nos temas literários, na música, nas técnicas agrícolas, nos gostos culinários4. Mas não é possível esquecer a influência da Síria e sobretudo do Iraque. Durante algum tempo, a sua presença cultural foi hegemónica no Andaluz quer pelo modelo estatal abácida desenvolvido pelos emires andaluzes desde Abderramão II quer pela importação de quadros culturais, de traduções de autores gregos e de outras obras originais de filósofos e homens de saber.
Civilização urbana, onde o poder político e militar assentava, em boa medida, nos grupos tribais e clânicos, o Islão era um corpo imenso pontuado por uma constelação de cidades, escalas ou pontos de chegada das rotas comerciais que iam de Sevilha a Tombuctu, a Tunes e ao Cairo e daí às grandes cidades da Ásia.
Nestes centros urbanos laboravam artífices, lojistas e mercadores de longo curso. Alimentavam-se da produção agrícola do alfoz ou termo, pontuado por aldeias camponesas. O modelo agrícola, favorecido no Andaluz, incentivava a arboricultura, com predomínio da figueira, da oliveira, da vinha e de plantas exóticas como a romazeira; desenvolvia a agricultura de regadio que deixou as suas marcas no Ribatejo, no Alentejo, no Algarve e nos poetas do Andaluz; intensificou a ganadaria, em particular a ovina. O Calendário de Córdova do ano 961 retrata admiravelmente esta agricultura de hortas onde vicejam as primeiras canas de açúcar e os jardins com as suas rosas e lírios.
A importância social do comércio reflecte-se na protecção que a Lei Islâmica dispensava aos viajantes e na estrutura das cidades que se dilatavam pelos seus arrabaldes ou bairros: no centro, ficava a rua mercantil, o ‘suk’, e, no meio do suk, a mesquita aljama ou maior, local de oração e reunião, tesouro pio e escola. E ao longo das rotas sucediam-se os alfunduques (alfândegas) ou depósitos de mercadorias, as albergarias, as caxarias ou entrepostos fechados onde se guardavam as mercadorias preciosas.
Coimbra, Lisboa, Santarém, Alcácer do Sal, Évora, Elvas, Beja, Mértola, Faro, Tavira, Silves foram algumas destas cidades islâmicas. Os forais de tipo Évora falam em aldeias povoadas. Beja era famosa pelos seus couros e o artesanato de algodão. O poeta e sufi Al-Mertuli evocou num poema o pregoeiro das caravanas. Lisboa distinguia-se pelo comércio, a navegação e a riqueza do seu estuário. Numa descrição geográfica muçulmana, conservada na Biblioteca do Palácio Real de Madrid, Lisboa surge, entre as cidades do Andaluz, logo a seguir a Sevilha e Córdova e ao lado de Málaga, Granada, Almeria, Cartagena, Játiva, Alcântara, Toledo.
As elites olhavam o Oriente como a luz e o modelo. Para lá voltavam o ‘mimbar’ das suas mesquitas e a cabeça dos seus mortos. Os hispano-romanos muçulmanos inventavam antepassados árabes. Esta penetração oriental processava-se por três vias: a peregrinação aos lugares santos, o comércio e as viagens de estudo. Durante dois séculos centenas de peninsulares viajaram para Cairuane, Alexandria, Damasco ou Bagdade para aprender com os mestres orientais o direito, a medicina, a geografia, a astronomia, a teologia, a filosofia. Mas, depois dos meados do século X, passa-se da fase receptiva à fase criadora. E as viagens de estudo voltam-se agora também e muito para Ocidente». In António Borges Coelho, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.


continua
Cortesia de Instituto Camões/JDACT