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«Lugar da morte do poeta e não dos monstros, reais ou fictícios, que ele
se inventa para esquivar o único combate que merece esse nome, aquele que exige
do poeta a palavra onde se inscreve o esplendor anónimo do mundo ou o seu
enigma, Guerra Junqueiro fez sonhar a sua época, mas quase só de sonhos triviais
ou óbvios. Bebeu a sua glória em vida. A de Pessoa cresceu na sombra, foi
deslumbramento de poucos antes de se tornar nesta maré equinocial que nos
perturba.
O mito-Pessoa é a sombra inevitável do fantástico e justificado
Pessoa-mito. É em nome deste que se pode e deve resistir à idolatria de que o
primeiro é objecto. Mito da existência discreta que se ofereceu a todas as sensações,
a todos os sentimentos, a todas as ideias, a todos os fantasmas de um mundo em
mutação vertiginosa e que voluntariamente se crucificou nas suas contradições, redimindo-as
pela invenção de poemas, claros como uma fotografia. Desse modo, cada um de nós
as pode contemplar sem ser destruído por elas como ele o foi. Todos os poetas
conferem aos sonhos ou pesadelos comuns a forma que os redime. Mas Pessoa
insuflou nessa missão um suplemento sacrificial, tornando-se “ninguém” para que
nós, ‘toda a gente’, pudéssemos visitar a sua barca de melancolia sem reparar,
como ele, que a paisagem é uma colecção de imagens sem sentido e a viagem
perdida de antemão. Tudo isto, porém, justificaria apenas que o tomássemos pelo
grande poeta romântico que não tivemos, um Antero de Quental um pouco mais
moderno, por exemplo, ou um Teixeira de Pascoaes menos difuso, e não pelo
criador da Modernidade poética, se é a ele, como parece, que devemos a
metamorfose da ideia mesma de Poesia. Em que consiste, realmente, o seu
estatuto mítico de poeta da Modernidade?
Pode discutir-se se Fernando Pessoa é ou não, com Camões, ‘o maior’
poeta de língua portuguesa. O que é difícil é contestar que a sua poesia seja
uma “poesia-outra”, a primeira, entre nós, que vive, ao mesmo tempo, da agonia
da imagem do Poeta como criador soberano da sua poesia e da Poesia como pura
modulação do sentimento e da emoção espontâneos. Sentimentos, emoções e
expressão ‘comunicavam’ quando o Poeta se sentia não apenas um “eu” inspirado,
mas um eu “eleito”, imaginando uma ponte directa entre as suas emoções e o
verbo que as modula. Pessoa retirou essa ponte, fez desse exercício a sua “arte
poética” e não há ninguém que leia letra redonda no nosso país que não saiba de
cor o famigerado ‘o poeta é um fingidor’ etc., esquecendo, em geral, que essa
arte poética significava, para quem assim se exprimia, o impossível sonho de
uma “poesia sem fingimento”. Quer dizer, um contacto entre o homem e a sua
verdade, ou antes, entre o homem e a Verdade, no plano das sensações, dos
sentimentos, das emoções e das ideias, tão misterioso como o que une o animal à
natureza e que só a nós, seres conscientes, nos é vedado. E por nos ser vedado
somos, queiramo-lo ou não, “naturalmente infelizes”, infelizes por não sermos “naturais”,
como o gato que brinca na rua como se fosse na cama. Ou então, “imaginariamente
felizes”, como Caeiro, despindo-se de si, palavras e ideias, para se deitar na
erva quente da realidade. Este é o fundamento único da visão de Pessoa e parece
impossível como uma visão, ao mesmo tempo tão desolada e tão intelectual, pôde
servir de pedestal ao “mito-Pessoa”. Temos de concluir que tal visão, simples
por complexa, encontra algum eco na experiência humana comum para nos ter
convertido em ouvintes emocionados de uma música que integra no seu ritmo a compaixão
pela “solitude” das estrelas ou a nostalgia pelo pequeno navio que entra na
barra do Tejo carregado dos nossos sonhos impossíveis de fundadores de Império.
Na verdade, não é a solidão das estrelas, nem o barco anónimo, nem objecto
algum, que importam ao poeta de “Tabacaria” ou da “Ode Marítima”, mas a ocasião
que lhe oferecem de se descobrir, olhando-os, “ser consciente da sua própria finitude
infinita”, prisioneiro do labirinto do Tempo». In Eduardo Lourenço, Fernando
Pessoa, Rei da Nossa Baviera, Gradiva, 2008, ISBN 978-989-616-242-9.
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