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Herculano visto por Antero, Eça, Guerra Junqueiro e Anselmo Andrade
«Antes mesmo de se conhecer o juízo de Antero sobre Herculano, nos
assalta logo como evidente que estas duas figuras, a daquele que se suicidou
por ‘isolamento’, como o disse Laranjeira e o repetiu Unamuno, e a do que
consumou mesmo o gesto absoluto da morte voluntária, tinham forçosamente de
convergir, já que partiam de pressupostos éticos, emotivos e intelectuais
semelhantes: o solitário de Vale de Lobos e o eterno solitário em-toda-a-parte
que foi Antero tinham de se encontrar na mesma recusa das concessões ao século e
aos interesses rasteiros ou mesmo medianos da vida quotidiana, na mesma
estóica, vertical e granítica inteireza moral de quem prefere a total ausência
aos compromissos, às presenças inautênticas. Ambos ostentavam, num século
rasteiro e chatim, as barbas lendárias de João de Castro e por força acabariam
de mal com os homens por amor ao ideal ou de mal com a ideia por amor aos
homens. Ambos desistiram: o primeiro retirando-se para uma existência marginal,
mas, apesar de tudo, útil e produtiva de lavrador que, ao menos, dá os frutos
das suas courelas ao País; o segundo partiu de mãos vazias, afastando-se em
radical ruptura com o mundo sensível, despojando-se de todas as humanas paixões
depois de ter percorrido degrau a degrau a escada estreita da ilusão. Ambos
povoam aquela pátria espiritual de que falava Sérgio, e onde o mesmo Sérgio, de
par com outros espíritos inteiros como Mouzinho da Silveira ou o referido João
de Castro, personalizam aquilo que alguém definiu como ‘o arquétipo’, na acepção
de ‘Jung’ de certa exemplaridade portuguesa. Esta inegável convergência tinha
de os irmanar. Falando de Antero no seu opúsculo acerca da proibição das Conferências
Democráticas, diz Herculano que o jovem ‘condottiere’ do Casino era ‘uma destas
índoles nobremente austeras que cada vez se vão tornando mais raras’. Por seu
turno, escrevendo em Setembro de 1877 sobre o então desaparecido Herculano,
Antero publicava no nº 2 de “Os Dois Mundos”, revista luxuosa editada em Paris
pelo conferencista frustrado de 1871, o judeu Salomão Sáragga, um curto artigo
onde se evoca o velho roble fulminado pelas ‘Parcas’, com o calor e a nobreza que
se adivinham.
Depois de começar por dizer que a morte de Herculano é, mais do que um
luto para a literatura, um ‘verdadeiro luto nacional’, Antero afirma ser ele o
último representante duma ilustre geração em quem ‘o forte génio português
reverdeceu ainda neste século com uma seiva tardia’. Mais do que um grande
escritor, tinha sido ‘um grande homem’, um desses que sintetiza o carâcter duma
raça, o ‘representante do génio da sua nação’. Na fisionomia moral de Alexandre
Herculano, prossegue Antero, ‘há certas linhas que fazem lembrar o perfil
enérgico e simples dos heróis típicos da nacionalidade portuguesa. Pertencia a
essa grande linhagem, que acabou com ele, e o seu século, admirando-o,
considerava-o todavia com um certo espanto ininteligente, como se sentisse
vagamente que aquele homem pertencia a um mundo extinto, um mundo cujo altivo
sentir já ninguém compreendia., Daí, continua o chefe espiritual da Geração
Nova, essa exemplar incompreensão mútua entre o seu tempo e o homem que nele
viveu, esse .dissentimento que estava na natureza das coisas’.
E acrescentava:
- Não nos cabe a nós ser juízes entre um grande homem e uma época, que tantos aclamam gloriosa, enquanto outros persistem em tê-la por mesquinha. A história (...) dará talvez razão, ao mesmo tempo, à época, que não podia ser maior nem melhor do que as circunstâncias a fizeram, e ao homem nobre e sincero, cuja altiva integridade repugnava invencivelmente a que pactuasse com o abaixamento moral dos contemporâneos, embora tal abaixamento lhe parecesse providencial, preferindo a atitude isolada e austera do protesto e as más vontades que ela provoca nos caracteres vulgares, à influência e dominação alcançada pela conivência com as paixões, os desvarios e os vícios da época. Há glórias mais brilhantes e ruidosas; nenhuma pode haver mais pura.
In João Medina, Herculano e a Geração de 70, Edições Terra Livre,
Lisboa, ano IV da Liberdade, 1977.
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