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Os Precursores de Vasco da Gama
«A Europa sente no XV século que mais altos destinos, que os da vida
quieta e remansada, a estão apelidando para novas e grandíssimas empresas. Não
lhe podem já bastar à nervosa actividade
as guerras interiores e as contenções domésticas sem fruto e sem valor. Pressente
que uma nova transformação, vagamente suspeitada, é já agora necessária ao seu viver.
É do Norte que desponta, com a imprensa, a primeira e grandiosa inovação, o instrumento
precioso da cultura intelectual. Pois, ao contrário, será das terras europeias
do Meio-dia e Ocidente que há-de brotar e florescer outra rama não menos
inesperada da civilização universal. Descobre Gutenberg o aparelho, em que se
corporifica e perpetua o pensamento. Mas é em Portugal que hão-de nascer as
mais assombrosas maravilhas, que o prelo e os tipos móveis hão-de escrever e
recontar.
O tempo dos Grandes Descobrimentos
Por uma singular contradição e paradoxo é o homem,
quando chegado a um grau já eminente de progresso, de sua natureza aventureiro,
quasi nómada como no primeiro alvorecer de agreste vida social. Apenas as
gentes, que demoram num ínfimo estádio de cultura, achegadas na condição e nos
costumes à bruteza de silvestres animais, se contentam de vagar pelas terras do
seu berço, contraindo as vistas incuriosas a breves horizontes e cifrando em poucas
léguas de contorno todo o seu mundo conhecido. Em todos os tempos e lugares, em
que houve uns princípios já crescentes de cultura, a migração é lei e natureza
dos povos adolescentes. Parece estreita a pátria ainda aos que mais a prezam e
reverenciam. Mais se nos afiguram avantajados os penates, quando os transplantamos
a distantes regiões, onde a pátria primitiva lance novas raízes e braceje
rebentos mais viçosos e vergônteas mais opimas. Enlaça-se, como por instinto
irresistível, a uma civilização adiantada este anseio insaciável por dilatar os
confins da trra onde nasceu. É como se disséramos a aspiração porventura inconsciente
para este venturoso cosmopolitismo, em que o homem seja afinal o cidadão e o
cultor da terra inteira, e em que para um só globo, tornado em património
universal e em lar comum, haja também uma só humanidade, uma só grei. Daí
procedem as colonizações e as conquistas, daí estas correntes ora impetuosas,
ora lentas, que desde a mais remota antiguidade têm vindo sem cessar sulcando a
terra, transplantando com as tribos e os povos mais diversos, as instituições,
os costumes, as indústrias, as ideias, os mitos, as religiões. À migração poderemos
chamar-lhe a circulação da humanidade. Sem ela, o progresso, que é a vida das nações,
ficaria inerte, infecundo, imobilizada. Assim também os ventos, as borrascas,
as correntes, que revolvem em ondas empoladas e em temerosos escarcéus a face
do Oceano, quando parece que perturbam a branda quietação e o manso dormitar da
natureza, estão fazendo o seu ofício beneficente e assegurando à terra madre a
sua perpétua juventude e a sua inexausta fecundidade. Do instinto natural da
migração procederam na antiguidade as famosas expedições de assírios e de
persas, de macedónios e romanos. Dele nasceram, depois de implantado o cristianismo,
as irrupções dos bárbaros setentrionais, que transfundiram novo sangue no
anémico império do Ocidente, já decrépito. Daí tiveram a sua origem as cruentas
expedições dos muçulmanos, que hasteando o pendão de um novo credo, entusiasta,
ardente, exclusivo, dilataram as suas conquistas desde as plagas meridionais da
Espanha e da Sicília até aos extremos confins da Índia oriental. Daí se originou
aquele tumultuoso movimento das cruzadas, em que a Europa cristã se foi arremessar
contra o Levante, em demanda dos sagrados lugares, incunábulo e metrópole da
fé. Daí vieram aquelas torrentes de bárbaros indómitos, que ao mando de
Tamur-Lan e Gengis Khan revolveram a Ásia, destruindo as antigas monarquias e
fundando novas dominações». In
Latino Coelho, 1882, Vasco da Gama, Bertrand Editora, Lisboa 2007, ISBN
978-972-25-1614-3.
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