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«Foi Herculano quem pela primeira vez notou paralelismo entre o império
francês e a Regeneração portuguesa. Herculano atendia exclusivamente ao aspecto
político da reacção: o reforço do Executivo, que restaurava de facto a monarquia
absoluta; e o restabelecimento da influência do clero.
Para combater a reacção, que assim denunciava e caracterizava, propunha
Herculano uma ampla reforma política, que tinha por base, ou então estava
organicamente articulada com um programa económico.
Tinha por objectivo político esta reforma a descentralização política e
administrativa, isto é a transferência do maior número possível de poderes para
os municípios, e a autonomia tão larga quanto possível destes em relação ao
poder central que dentro deste sistema, não seria mais do que o órgão coordenador
da federação dos municípios.
À estrutura política dos municípios, Herculano deixa-o entrever mais de
uma vez, seria a democracia directa. A assembleia dos cidadãos municipais seria
o órgão soberano e legislador, como hoje em certos cantões suíços, elegeria o
órgão executivo municipal dos concelhos. Herculano tinha em mente, como facilmente
se vê, a estrutura dos concelhos medievais, tal como a descreve detalhadamente
no 4º volume da sua História de Portugal.
A administração municipal assim concebida era para Herculano a mais eficaz
defesa contra os abusos do poder central, quer este se apoiasse na força armada,
quer na mistificação eleitoral. O eleitor vulgar pode facilmente ser iludido ou
corrompido nas eleições gerais em escala nacional, disputadas em torno de programas
e de pessoas que ele não conhece e pelos quais apenas se interessa longinquamente.
Pelo contrário, em votações dentro da área restrita do concelho, o eleitor
estaria directamente interessado e-daria voto sobre pessoas e questões que conhecia
de perto. O municipalismo seria a única maneira de garantir a genuinidade do sufrágio,
de suprimir as oligarquias e de realizar do governo do país pelo país.
É evidente que semelhante sistema só seria viável sobre uma dada base
económica. Lopes de Mendonça, na polémica com Herculano objectou acertadamente
que este municipalismo está em contradição com a existência de uma classe
trabalhadora dispersa mas unida nos seus interesses, e que a centralização
política, com a correspondente existência dos grandes partidos, serie, pelo
contrário, favorável à unidade da classe trabalhadora.
Herculano não estava preparado para responder a esta objecção porque
tinha em mente uma estrutura económica tradicional em que não existia o
proletariado fabril, nem as contradições económicas inerentes ao capitalismo
industrial. Tal economia corresponderia de algum modo às condições da época em
Portugal; mas Herculano pressupunha-a e desejava-a permanente.
É neste ponto que podemos observar a outra face desta campanha de Herculano.
Ele combatia a reacção provocada em França pele ameaça socialista, mas também
combatia o Socialismo que a provocara. Tendo lido alguns teóricos do Socialismo
pré-marxista, nomeadamente Sismondi e Proudhon, Herculano não ignorava as novas
condições criadas pelo desenvolvimento da grande indústria e relacionava a
concentração industrial com a ruína da pequena propriedade e a proletarização em
messa. Felizmente, segundo ele, Portugal estava ainda longe de atingir esta fase;
a média e a pequena propriedade continuavam a dominar aqui, E para prevenir os
males de concentração e da proletarização experimentados em países .menos
afortunados tornava-se urgente evitar a concentração da propriedade e facilitar
o acesso do trabalhador rural à propriedade da , terra. O plano de Herculano
para resolver, ou antes, prevenir a questão social em Portugal consistia em converter
na mais larga medida possível o trabalhador em pequeno proprietário». In
António José Saraiva, Herculano Desconhecido. 1851-1853, Edições SEN, Porto,
1953.
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