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«No final do reinado de Afonso III pode dizer-se que o reino de Portugal
é uma entidade política constituída. Existe uma corte em Lisboa, uma capital do
território; o crescimento do Reino estabiliza-se do Minho à costa do Algarve. O
que não significa que a corte castelhana de Toledo não mantenha a sua força de
atracção no Ocidente, manifesta na acção de Afonso X-o-Sábio como mecenas dos trovadores
e jograis de língua galego-portuguesa e como exemplo para os cronistas de ambas
as regiões, com a sua ‘Crónica General de
España’. Toledo é a verdadeira capital cultural de toda a Espanha ocidental.
Aparentemente, o Portugal ‘hispânico’ sossobrou no cataclismo social e
político de 1383. Seguiu-se-lhe uma fase de castelhanofobia, bem marcada nas
crónicas de Fernão Lopes. Nessa mesma fase ocorreu também a decapitação da
antiga nobreza, a nobreza registada nos livros de linhagens e que estava muito
ligada a Castela.
Mas o afastamento de Portugal e de Castela, que é sobretudo de ordem
afectiva, dura pouco mais que a vida de um homem. João I casou com uma princesa
da Casa inglesa de Lencaster, cujo chefe era candidato ao trono de Castela. A
batalha de Aljubarrota tinha sido um episódio dessa guerra de candidatura
frustrada. D. Isabel, a filha do mesmo rei, foi destinada ao duque de Borgonha,
aliado dos Ingleses na guerra contra o rei de França. Seu filho Duarte I continuou
a anterior tradição das alianças com a Casa de Aragão (donde viera a rainha
Santa Isabel), que era o principal adversário de Castela na estratégia dos
reinos peninsulares. Mas já Afonso V, o neto de João I, reivindicou o trono de
Castela numa campanha que foi decidida na batalha de Toro (1476). Esta mesma
ambição de dominar ambas as coroas da Espanha ocidental leva a promover o
casamento do neto de Afonso V com uma princesa castelhana; a morte desastrosa e
prematura do príncipe Afonso adiou o projecto, que foi retomado por Manuel I, o
qual chegou a ser jurado herdeiro dos Reis Católicos em Sevilha. Os casamentos
castelhanos do rei Manuel criaram um xadrez de probabilidades cujo beneficiário
veio a ser Filipe II, neto de Manuel e rei de Castela.
Desta política dos reis de Portugal, a partir do neto de João I, resultou
que, durante mais de um século, a rainha de Portugal era uma princesa
castelhana e que a corte de Lisboa nos séculos XV e XVI se castelhanizava mais
do que nunca. Era natural que os poetas portugueses fossem bilingues neste
período, em que abundavam as mulheres castelhanas na corte de Lisboa. Na
poesia, como em tudo o mais, os modelos vinham de Castela.
A tradição poética oral de raiz galega, em que se tinham inspirado
Afonso X e Dinis I, extinguiu-se porque as condições não eram já favoráveis ao
exercício da actividade dos jograis; as novas formas poéticas hispânicas enchem
os dois grandes cancioneiros impressos, um em Valência, por Hernando del
Castillo, e outro em Lisboa, por Garcia de Resende, respectivamente em 1511 e
1516.
A nobreza local, a que ficou registada nos livros de linhagens' afundou-se,
ao que parece, na catástrofe de 1383. Mas outra se criou, com origem nos filhos
e netos de João I e de Nun’Álvares, cujo poder não é já propriamente local, mas
nacional, pois se estende indiscriminadamente de norte a sul do território.
Esta nobreza estava no topo da corte. É com ela que João II tem de se
haver, não podendo evitar que um dos seus principais representantes, o cunhado Manuel,
filho do duque de Viseu, venha a herdar o trono.
Crê-se geralmente que a conquista de Ceuta manifesta um espírito novo
de empresa mercantil, uma orientação comercial da guerra.
Esta hipótese foi uma tentativa infeliz de ‘racionalização’ da história.
João I e os seus conselheiros nem sequer tinham decidido ocupar a cidade
definitivamente, mas apenas fazer um assalto que por fortuna, foi excepcionalmente
bem sucedido. O espírito de aventura cavaleiresca é bem patente se nos
lembrarmos de que o rei arriscou a vida da sua pessoa, a do seu herdeiro e os
seus principais e mais experimentados cavaleiros expondo-se a um desastre que
poderia ser fatal para o destino do reino recentemente restituído à independência.
Vinte anos depois deu-se a derrota de Tânger, lembrando o que podia ter
acontecido em Ceuta. João I foi na aventura de Ceuta um precursor (mas
afortunado) do rei Sebastião.
O assalto e tomada de Ceuta são concebidos dentro do espírito tradicional
e templário da guerra santa contra os mouros; é a zona ocidental da Cruzada do
Oriente, de que resultou a conquista de Jerusalém; é também para os reis da
Península uma alternativa à guerra de Granada, que virá a ser tomada em 1492. O
cardeal Cisneros também prolongou a Reconquista em África, tomando Oran nos
primeiros anos do século XVI.
Os historiadores desta corrente, desastrada e grosseiramente ‘racionalistas’,
são também ‘europeístas’ e viram na conquista de Ceuta, seguida das explorações
marítimas em África, a obra de um grupo social que estava dominando as grandes
cidades mercantis no Norte da Europa, as cidades italianas do Norte e o reino
de Aragão-Catalunha. É também um erro de perspectiva, porque Portugal pertencia
(então e agora) a uma zona cultural muito diferente, fortemente marcada pelo
islamismo, em que o espírito cavaleiresco dominava de longe o espírito ‘burguês’.
A guerra com os Muçulmanos, longe de ser um rompimento com a cultura islâmica,
é, pelo contrário, a sua confirmação e reforço. O mesmo espírito de ‘guerra santa’
inspirava os guerreiros de um lado e outro da linha de combate. A permanência
da cultura islâmica em Portugal está bem patente nos pátios e salas mouriscas
do palácio da vila em Sintra, mandado construir pelo próprio João I». In António
José Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Gradiva Publicações,
Lisboa, 1998, ISBN 972-662-157-7.
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