(uaum/lfontes).
Cortesia de uaum
Resumo
Objecto
de intervenção arqueológica desde 1987, as ruínas arqueológicas de Dume,
correspondentes aos vestígios da basílica cristã de meados do século VI e de
parte do mosteiro fundado por São Martinho de Dume, reaproveitando parte de uma
uilla romana, viram reconhecidas a sua importância e valor histórico,
cultural e científico, tendo sido classificadas como Monumento Nacional -
Decreto n.º 45/93, de 30-11. Apresenta-se
uma síntese dos resultados obtidos, contextualizando-os no quadro da arquitectura
cristã antiga de Braga e da Antiguidade Tardia do Noroeste de Portugal. Abordaremos ainda o projecto de valorização em curso, com o qual se
pretende criar um pólo cultural e lúdico, que funcione como centro de
interpretação do sítio, podendo receber visitas organizadas de público escolar,
público indiferenciado e especialistas em Arqueologia e História.
A Igreja Sueva de Dume: resultados actualizados
«Dume
localiza-se a menos de 3 quilómetros da cidade de Braga, nos recortes da
bordadura meridional do vale do Rio Cávado, pouco restando do seu carácter
rural, dominado pela característica paisagem de “bocage”, progressivamente
transformada pela expansão urbanística da cidade de Braga. Aí em Dume, próximo da urbs e à margem da estrada romana que
ligava Bracara Augusta a Lucus Augusti por Limia e Tude,
entre o saltus e o ager, levantou-se por meados do século VI uma
basílica consagrada a S. Martinho de Tours - “(...) Erat enim eo tempore
Miro Rex Civitate illa, in qua decessor ejus Basilicam Sancti Martini
aedificaverat (...)”, como refere S. Gregório de Tours nos seus Miracula
et Opera minora, IV, 7.
jdact
As ruínas da basílica sueva de Dume (classificadas como Monumento
Nacional, Decreto N.º 45/93, de 30-11), localizam-se sob a actual igreja
paroquial, no centro da freguesia, marcando a sacralidade do lugar desde há
mais de 1500 anos. Mandada construir pelo rei suevo Charrarico cerca do ano
550, foi consagrada a São Martinho de Tours, como voto de agradecimento pela
cura do filho. Foi esta basílica que São Martinho de Dume elevou a sede
episcopal, cerca de 558, após ter fundado um mosteiro junto, adaptando uma
antiga uilla romana. Dos textos coevos da fundação do mosteiro de Dume e
dos séculos seguintes, transparece precisamente a importância do conjunto
monástico dumiense como centro de difusão religiosa e cultural.
O testemunho manuscrito de Valério Pinto de Sá, citado por João de Moura
Coutinho, constitui a primeira referência explícita, datada do século XVIII, da
existência de um primitivo templo soterrado sob a igreja paroquial de Dume.
Relatou então, com alguma tristeza, a ampliação que se fez da igreja paroquial,
sem se cuidar de proteger e estudar os inúmeros vestígios que surgiam da
demolição do templo anterior, depreendendo-se a existência de uma edificação de
planta trilobada, desenvolvendo-se sob o templo actual e estendendo-se pelo
adro.
As escavações arqueológicas que aí se têm vindo a realizar, desde 1987,
permitiram colocar a descoberto vestígios correspondentes a uma ocupação do
local desde o século I até à actualidade, destacando-se significativos troços
do templo de época sueva (século VI) e da sua reedificação alto-medieval
(séculos IX-X), confirmando--se portanto a existência das ruínas vistas no
século XVIII.
Os vestígios mais antigos correspondem a parte de uma uilla romana
fundada nos séculos I-II e continuamente ocupada nos séculos seguintes, como
comprova a construção de um balneário nos séculos III-IV, bem como a adaptação
de parte dos edifícios a mosteiro, como evidenciam os testemunhos de
remodelações nos séculos VI e VII.
Os vestígios da basílica sueva estendem-se pelo adro e sob a actual
igreja paroquial, numa área superior a 750 m2. Conservam-se restos da fachada,
da nave, da quadra central e da cabeceira, conseguindo-se reconstituir o
traçado global do primitivo templo. Construído com poderosas paredes de
cantaria almofadada e de alvenaria graníticas, o edifício desenha uma planta em
cruz latina orientada Oeste-Este, com cabeceira trilobada e uma só nave
rectangular.
A excepcional dimensão do templo, mesmo no contexto peninsular, poderá
explicar-se por se tratar de uma edificação de iniciativa régia, com a qual se
deve ter pretendido afirmar não só o poder suevo, mas especialmente
testemunhar, através de uma grandiosa obra arquitectónica, a efectiva conversão
do rei e do seu povo ao cristianismo católico, conversão que São Martinho
Dumiense haveria de consolidar, lançando as bases da organização administrativa
e territorial da Igreja Bracarense.
Este vasto edifício, com cerca de 33m de comprimento e 21m de largura
máxima, apresenta uma divisão interior de espaços bem estabelecida: uma nave
rectangular, com passagem à quadra central marcada por uma tripla arcatura
apoiada em quatro pares de colunas, formando uma iconostasis de triplo
vão; uma quadra central, que se elevaria em torre lanterna e que se prolonga lateralmente
por duas absides semicirculares, formando uma espécie de transepto, ritmando-se
as paredes internas com uma teoria de colunas adossadas; uma capela-mor também
de planta semicircular peraltada, mais elevada e à qual se acedia por três
degraus, também ritmada interiormente por colunas adossadas. Do ponto de vista
da organização litúrgica do espaço, as três zonas que se diferenciam com
clareza na basílica de Dume testemunham toda a complexidade do serviço
litúrgico de época sueva, correspondente a uma prática de culto em que se
separava o santuário e o coro, reservado aos sacerdotes, da zona da nave,
reservado aos fiéis, apontando para uma tradição litúrgica cristã com origem no
Mediterrâneo oriental, muito provavelmente grega.
A solução planimétrica evidenciada pela basílica de Dume inscreve-se no
modelo de igrejas orientais que, a partir do século VI se difundiu pelo
ocidente europeu. A penetração precoce deste modelo na região bracarense parece
resultar de uma difusão oriunda das regiões italianas de Milão e de Ravenna,
que aqui poderia ter chegado tanto por via marítima mediterrânica, como por via
continental, esta através do reino franco-merovíngio. Da decoração
arquitectónica praticamente nada se conservou. Os raros elementos
arquitectónicos que poderiam ter feito parte da edificação sueva ostentam
formas ou temáticas decorativas de tradição clássica romana, com evoluções
características da incorporação de gramáticas formais e decorativas locais e/ou
regionais, assemelhando-se a produções datadas, noutros monumentos, dos séculos
V-VIII: um fragmento de cancel, em mármore, com decoração vegetalista; um
fragmento de friso com decoração geométrica de losangos, em calcário; um
fragmento de grelha de gelosia, também em calcário; e quatro capitéis do tipo
coríntio». Luís Fontes, A Igreja Sueva
de São Martinho de Dume, Arquitectura Cristã Antiga de Braga e na Antiguidade Tardia
do Noroeste de Portugal, Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho,
Revista de História da Arte, 2008.
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