quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A Igreja Sueva de São Martinho de Dume. Arquitectura Cristã Antiga de Braga e na Antiguidade Tardia do Noroeste de Portugal. Luís Fontes. «Os vestígios mais antigos correspondem a parte de uma uilla romana fundada nos séculos I-II e continuamente ocupada nos séculos seguintes…»

Planta das ruínas arqueológicas da basílica de Dume
(uaum/lfontes).
Cortesia de uaum

Resumo
Objecto de intervenção arqueológica desde 1987, as ruínas arqueológicas de Dume, correspondentes aos vestígios da basílica cristã de meados do século VI e de parte do mosteiro fundado por São Martinho de Dume, reaproveitando parte de uma uilla romana, viram reconhecidas a sua importância e valor histórico, cultural e científico, tendo sido classificadas como Monumento Nacional - Decreto n.º 45/93, de 30-11. Apresenta-se uma síntese dos resultados obtidos, contextualizando-os no quadro da arquitectura cristã antiga de Braga e da Antiguidade Tardia do Noroeste de Portugal. Abordaremos ainda o projecto de valorização em curso, com o qual se pretende criar um pólo cultural e lúdico, que funcione como centro de interpretação do sítio, podendo receber visitas organizadas de público escolar, público indiferenciado e especialistas em Arqueologia e História.

A Igreja Sueva de Dume: resultados actualizados
«Dume localiza-se a menos de 3 quilómetros da cidade de Braga, nos recortes da bordadura meridional do vale do Rio Cávado, pouco restando do seu carácter rural, dominado pela característica paisagem de “bocage”, progressivamente transformada pela expansão urbanística da cidade de Braga. Aí em Dume, próximo da urbs e à margem da estrada romana que ligava Bracara Au­gusta a Lucus Augusti por Limia e Tude, entre o saltus e o ager, levantou-se por meados do século VI uma basílica consagrada a S. Martinho de Tours - “(...) Erat enim eo tem­pore Miro Rex Civitate illa, in qua decessor ejus Basilicam Sancti Martini aedificaverat (...)”, como refere S. Gregório de Tours nos seus Miracula et Opera minora, IV, 7.

Pormenor da abside sul, evidenciando solução construtiva
jdact

As ruínas da basílica sueva de Dume (classificadas como Monumento Nacional, De­creto N.º 45/93, de 30-11), localizam-se sob a actual igreja paroquial, no centro da freguesia, marcando a sacralidade do lugar desde há mais de 1500 anos. Mandada construir pelo rei suevo Charrarico cerca do ano 550, foi consagrada a São Martinho de Tours, como voto de agradecimento pela cura do filho. Foi esta basílica que São Martinho de Dume elevou a sede episcopal, cerca de 558, após ter fundado um mosteiro junto, adaptando uma antiga uilla romana. Dos textos coevos da fundação do mosteiro de Dume e dos séculos seguintes, transparece precisamente a importância do conjunto monástico dumiense como centro de difusão religiosa e cultural.
O testemunho manuscrito de Valério Pinto de Sá, citado por João de Moura Coutinho, constitui a primeira referência explícita, datada do século XVIII, da existência de um primitivo templo soterrado sob a igreja paroquial de Dume. Relatou então, com alguma tristeza, a ampliação que se fez da igreja paroquial, sem se cuidar de proteger e estudar os inúmeros vestígios que surgiam da demolição do templo anterior, depreendendo-se a existência de uma edificação de planta trilobada, desenvolvendo-se sob o templo actual e estendendo-se pelo adro.
As escavações arqueológicas que aí se têm vindo a realizar, desde 1987, permitiram colocar a descoberto vestígios correspondentes a uma ocupação do local desde o século I até à actualidade, destacando-se significativos troços do templo de época sueva (século VI) e da sua reedificação alto-medieval (séculos IX-X), confirmando--se portanto a existência das ruínas vistas no século XVIII.
Os vestígios mais antigos correspondem a parte de uma uilla romana fundada nos séculos I-II e continuamente ocupada nos séculos seguintes, como comprova a construção de um balneário nos séculos III-IV, bem como a adaptação de parte dos edifícios a mosteiro, como evidenciam os testemunhos de remodelações nos séculos VI e VII.
Os vestígios da basílica sueva estendem-se pelo adro e sob a actual igreja paroquial, numa área superior a 750 m2. Conservam-se restos da fachada, da nave, da quadra central e da cabeceira, conseguindo-se reconstituir o traçado global do primitivo templo. Construído com poderosas paredes de cantaria almofadada e de alvenaria graníticas, o edifício desenha uma planta em cruz latina orientada Oeste-Este, com cabeceira trilobada e uma só nave rectangular.
A excepcional dimensão do templo, mesmo no contexto peninsular, poderá explicar-se por se tratar de uma edificação de iniciativa régia, com a qual se deve ter pre­tendido afirmar não só o poder suevo, mas especialmente testemunhar, através de uma grandiosa obra arquitectónica, a efectiva conversão do rei e do seu povo ao cristianismo católico, conversão que São Martinho Dumiense haveria de consolidar, lançando as bases da organização administrativa e territorial da Igreja Bracarense.
Este vasto edifício, com cerca de 33m de comprimento e 21m de largura máxima, apresenta uma divisão interior de espaços bem estabelecida: uma nave rectangular, com passagem à quadra central marcada por uma tripla arcatura apoiada em quatro pares de colunas, formando uma iconostasis de triplo vão; uma quadra central, que se elevaria em torre lanterna e que se prolonga lateralmente por duas absides semicirculares, formando uma espécie de transepto, ritmando-se as paredes internas com uma teoria de colunas adossadas; uma capela-mor também de planta semicircular peraltada, mais elevada e à qual se acedia por três degraus, também ritmada interiormente por colunas adossadas. Do ponto de vista da organização litúrgica do espaço, as três zonas que se diferenciam com clareza na basílica de Dume testemunham toda a complexidade do serviço litúrgico de época sueva, correspondente a uma prática de culto em que se separava o santuário e o coro, reservado aos sacerdotes, da zona da nave, reservado aos fiéis, apontando para uma tradição litúrgica cristã com origem no Mediterrâneo oriental, muito provavelmente grega.
A solução planimétrica evidenciada pela basílica de Dume inscreve-se no modelo de igrejas orientais que, a partir do século VI se difundiu pelo ocidente europeu. A penetração precoce deste modelo na região bracarense parece resultar de uma difusão oriunda das regiões italianas de Milão e de Ravenna, que aqui poderia ter chegado tanto por via marítima mediterrânica, como por via continental, esta através do reino franco-merovíngio. Da decoração arquitectónica praticamente nada se conservou. Os raros elementos arquitectónicos que poderiam ter feito parte da edificação sueva ostentam formas ou temáticas decorativas de tradição clássica romana, com evoluções características da incorporação de gramáticas formais e decorativas locais e/ou regionais, assemelhando-se a produções datadas, noutros monumentos, dos séculos V-VIII: um fragmento de cancel, em mármore, com decoração vegetalista; um fragmento de friso com decoração geométrica de losangos, em calcário; um fragmento de grelha de gelosia, também em calcário; e quatro capitéis do tipo coríntio». Luís Fontes, A Igreja Sueva de São Martinho de Dume, Arquitectura Cristã Antiga de Braga e na Antiguidade Tardia do Noroeste de Portugal, Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, Revista de História da Arte, 2008.

Cortesia da UAUAveiro/JDACT