domingo, 7 de outubro de 2012

A Mocidade de D. João V. Luís Rebello da Silva. «Nunca me hão-de esquecer os mofinos pavões de ouro que tanto me citou, e que tive a simplicidade de andar procurando na torre do castelo no meio das risadas dos arquivistas…»

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A Mocidade de D. João V
Todos falam, e poucos entendem
«Então, querido abade, exclamou o comendador com jovialidade, ainda teimará que Horácio na sua ode quis citar o patriarca Japhet em lugar do Titão da fábula? Audax
Japeti genus?
 - Meu amigo, cada vez me convenço mais. Depois que nos separámos deparou-me a fortuna um manuscrito precioso em caracteres alemães minúsculos, vulgarmente chamados góticos; folheando descobri nele o comentário de algumas odes do poeta valido de Mecenas... Ora justamente entendeu o glosador do mesmo modo esta passagem... - Que série de prodígios! - gritou Lourenço Telles em ar zombeteiro - Com que o senhor abade viu o livro? Diga-me: e o frontispício tinha araras ou papagaios? Nunca me hão-de esquecer os mofinos pavões de ouro que tanto me citou, e que tive a simplicidade de andar procurando na torre do castelo no meio das risadas dos arquivistas…
Dizendo isto, o velho erudito cheirava pitadas sobre pitadas, batendo com os dedos a compasso de marcha sobre a tampa da sua caixa.
 - O livro existe, senhor Lourenço Telles! - acudiu com aspecto grave o autor da carta a Lúcio Floro, cuja ira se manifestava na cor violeta que lhe invadiu a calva. - Mas os pavões foram-se! - replicou o contraditor cada vez mais contumaz. - Deixe-se de remoques impróprios da sua idade e indignos do respeito que deve aos outros, atalhou o abade, crescendo sobre as imensas tíbias. Vi o manuscrito, sim senhor. Por sinal é um volume de capa de pergaminho e fechos de latão… Não tem araras, nem pavões, mas no rosto poderá admirar-lhe a bela cercadura iluminada, obra de bom mestre… talvez Francisco de Hollanda.
 - Nada! Raphael ou Benvenuto Cellini! - redarguiu o velho sábio com seriedade. Com que viu o livro, pôs-lhe os óculos em cima?... Noto a teima da fortuna. Não há dia em que não lhe dê um alegrão… Chovem manuscritos e araras em o senhor abade errando o seu latim.
E o comendador, esfregando as mãos, recostou-se com ar de mofa na imensa poltrona.
Escusa de tomar comigo esse tom, que me faz dó! — exclamou o investigador das bexigas doidas, corando e erguendo-se com ímpeto para tornar logo a sentar-se. Conhece a placidez do meu espírito e a vaidade dos seus chascos. Torno a repetir: vi o livro; estudei os seus caracteres góticos; e asseguro-lhe que é do tempo dos templários…
 - Justamente! Escrito por Gualdim Paes, que sabia Horácio como um mostre de meninos, e iluminado por Francisco de Hollanda que viveu três ou quatro séculos depois!... Dou-lhe os parabéns, desta vez não ressuscitou os mortos; fez mais que Jesus Cristo, meteu no bolso os seus trezentos ou quatrocentos anos por distracção. Pasmo como ainda lhe não caíram os dentes!... É preciso serem de ferro para mastigar semelhantes pilulas.
O abade colhido em flagrante e aflito agitava-se, mudava de cor, e estendia a mão com solenidade. - Não apanhe um lapso pelos cabelos! - gritou trémulo de raiva - O que eu queria citar era o século dezasseis. O livro existe. Pertence a um amigo meu; mas não sou denunciante: por isso prefiro calar-me.
 - Acho prudente! - redarguiu Lourenço Telles, sacudindo o tabaco da tira com um piparote - Pelo que vejo a raridade desceu da lua e volta para a lua em eu me convencendo de que Horácio chamou hebreu a um Titão!... Pelo amor de Deus! É capaz de jurar sobre umas horas que descobriu a ossada das éguas lusitanas, que os Romanos disseram concebidas do vento… Estou-o ouvindo descrever-me a história autêntica da relíquia.
 - Senhor Lourenço Telles, compadeço-me das trevas do seu espírito. O manuscrito há quem o tenha; fiquemos nisto. Se não acredita, perdoo-lhe a injúria em atenção às suas enfermidades. - Agradeço a clemência!... Jasmin, que horas são? - Uma hora menos um quarto - respondeu o escudeiro, inclinando-se com a bengala e o chapéu do abade ainda nas mãos.
 - Guarde no meu quarto esse capacete eclesiástico, e não se esqueça de arrecadar a taça egípcia da sedutora Cleópatra. Acudiu o latinista com um sorriso em que brincavam mil ironias aceradas - Deus nos livre de que monumentos de tanta estimação se desencaminhem. O museu pode requere-los (11)». In A Mocidade de D. João V, Luís Augusto Rebello da Silva, Obras Completas, PQ 9261, R4M58, 1907, Volume 4, Library University Of Toronto, Setembro 1967, Empresa da História de Portugal, Livraria Moderna, 1907.

Cortesia de Livraria Moderna/JDACT