A Mocidade de D. João V
Todos falam, e poucos entendem
«Então, querido abade,
exclamou o comendador com jovialidade, ainda teimará que Horácio na sua ode
quis citar o patriarca Japhet em lugar do Titão da fábula? Audax
Japeti genus?
- Meu amigo, cada vez me convenço mais. Depois
que nos separámos deparou-me a fortuna um manuscrito precioso em caracteres alemães
minúsculos, vulgarmente chamados góticos; folheando descobri nele o comentário de
algumas odes do poeta valido de Mecenas... Ora justamente entendeu o glosador do
mesmo modo esta passagem... - Que série de prodígios! - gritou Lourenço Telles
em ar zombeteiro - Com que o senhor abade viu o livro? Diga-me: e o
frontispício tinha araras ou papagaios? Nunca me hão-de esquecer os mofinos
pavões de ouro que tanto me citou, e que tive a simplicidade de andar
procurando na torre do castelo no meio das risadas dos arquivistas…
Dizendo isto, o velho
erudito cheirava pitadas sobre pitadas, batendo com os dedos a compasso de
marcha sobre a tampa da sua caixa.
- O livro existe, senhor Lourenço Telles! -
acudiu com aspecto grave o autor da carta a Lúcio Floro, cuja ira se
manifestava na cor violeta que lhe invadiu a calva. - Mas os pavões foram-se! -
replicou o contraditor cada vez mais contumaz. - Deixe-se de remoques
impróprios da sua idade e indignos do respeito que deve aos outros, atalhou o
abade, crescendo sobre as imensas tíbias. Vi o manuscrito, sim senhor. Por sinal
é um volume de capa de pergaminho e fechos de latão… Não tem araras, nem
pavões, mas no rosto poderá admirar-lhe a bela cercadura iluminada, obra de bom
mestre… talvez Francisco de Hollanda.
- Nada! Raphael ou Benvenuto Cellini! - redarguiu
o velho sábio com seriedade. Com que viu o livro, pôs-lhe os óculos em cima?...
Noto a teima da fortuna. Não há dia em que não lhe dê um alegrão… Chovem
manuscritos e araras em o senhor abade errando o seu latim.
E o comendador,
esfregando as mãos, recostou-se com ar de mofa na imensa poltrona.
Escusa de tomar comigo
esse tom, que me faz dó! — exclamou o investigador das bexigas doidas, corando
e erguendo-se com ímpeto para tornar logo a sentar-se. Conhece a placidez do
meu espírito e a vaidade dos seus chascos. Torno a repetir: vi o livro; estudei
os seus caracteres góticos; e asseguro-lhe que é do tempo dos templários…
- Justamente! Escrito por Gualdim Paes, que
sabia Horácio como um mostre de meninos, e iluminado por Francisco de Hollanda que
viveu três ou quatro séculos depois!... Dou-lhe os parabéns, desta vez não ressuscitou
os mortos; fez mais que Jesus Cristo, meteu no bolso os seus trezentos ou
quatrocentos anos por distracção. Pasmo como ainda lhe não caíram os dentes!...
É preciso serem de ferro para mastigar semelhantes pilulas.
O abade colhido em
flagrante e aflito agitava-se, mudava de cor, e estendia a mão com solenidade.
- Não apanhe um lapso pelos cabelos! - gritou trémulo de raiva - O que eu
queria citar era o século dezasseis. O livro existe. Pertence a um amigo meu;
mas não sou denunciante: por isso prefiro calar-me.
- Acho prudente! - redarguiu Lourenço Telles,
sacudindo o tabaco da tira com um piparote - Pelo que vejo a raridade desceu da
lua e volta para a lua em eu me convencendo de que Horácio chamou hebreu a um
Titão!... Pelo amor de Deus! É capaz de jurar sobre umas horas que descobriu a
ossada das éguas lusitanas, que os Romanos disseram concebidas do vento… Estou-o
ouvindo descrever-me a história autêntica da relíquia.
- Senhor Lourenço Telles, compadeço-me das
trevas do seu espírito. O manuscrito há quem o tenha; fiquemos nisto. Se não
acredita, perdoo-lhe a injúria em atenção às suas enfermidades. - Agradeço a
clemência!... Jasmin, que horas são? - Uma hora menos um quarto - respondeu o
escudeiro, inclinando-se com a bengala e o chapéu do abade ainda nas mãos.
- Guarde no meu quarto esse
capacete eclesiástico, e não se esqueça de arrecadar a taça egípcia da sedutora
Cleópatra. Acudiu o latinista com um sorriso em que brincavam mil ironias
aceradas - Deus nos livre de que monumentos de tanta estimação se desencaminhem.
O museu pode requere-los (11)». In A Mocidade de D. João V, Luís Augusto
Rebello da Silva, Obras Completas, PQ 9261, R4M58, 1907, Volume 4, Library
University Of Toronto, Setembro 1967, Empresa da História de Portugal, Livraria
Moderna, 1907.
Cortesia de Livraria
Moderna/JDACT