sábado, 27 de outubro de 2012

A Mocidade de D. João V. Rebelo da Silva. «A simplicidade era à superfície; mas por dentro tudo era velhacaria. Eis um resumo a vera efígie do Tomé das Chagas, andador das almas, primeiro servente do padre frei João dos Remédios, e sacristão da missa dos domingos e quintas-feiras…»

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«Sobre o enganado pescoço tremia a cabeça do Tomé, cabeça esguia na fronte, alterosa na coroa, e empinada na nuca. Uma peruca insolente arrepiada em molhos, e cor de laranja, caía-lhe aos lados em sanefas e, terminava num bico à flor das sobrancelhas, espavoridas à raiz da mais deprimida testa. Seguia-se a cara do servo de Deus. Imaginem-se dois queixos afunilados, e revirados; sobre os queixos e maçãs do rosto grude-se uma pele cor de coquilho, áspera como lixa; arme-se esta quase caveira de um nariz agudo como ponta de lanceta, ornado do cavalete de rigor; e bem considerado este escândalo de carne e osso, digam todos se acaso seria possível criar Deus uma figura mais exótica e repugnante. Os gestos condiziam com a pessoa. É pecado escarnecer do próximo; mas quem não riria vendo aqueles pés eternos e inchados de cotovelos, com os calcanhares a meia légua de distância um do outro? Quem ficaria sério quando o esqueleto caminhava em passo fúnebre, içado sobre duas pernas de cegonha, volteando os braços com a elegância de um morcego? A todas as outras prendas juntava certo ar à bolina no lado esquerdo e um mau jeito no pescoço.
Enormes óculos de azelha, apertados no nariz, proporcionavam ao devoto a comodidade de frechar a todos com a vista de lince por baixo dos vidros. As canelas embainhavam-se em meias bicolores de lã parda com passagens azuis, tomadas nos buracos numerosos. Calções velhos e sujos, matizados de um xadrez de remendos, cobriam-lhe as delgadas coxas. A véstia, cor de pulga, encolhia-se no encovado peito, para dançar em plena folga sobre o suposto ventre; e o gibão verde-garrafa, já no fio, de uma baeta lanzuda, fugia do corpo ao dono, como os judeus ao fogo do Santo Ofício (maldito).
O Chagas, Deus tinha misericórdia da sua alma, animava as graças da fisionomia com um risinho amarelo e beato. Se alguma coisa merecia o seu agrado, caso raro, ouviam-se em aplauso estrepitoso as suas estrídulas gargalhadas, desafinadas em falsete. Debaixo dos beiços sorvidos encavaleiravam-se os mais negros e limosos dentes, arremetendo pela boca fora. Os olhos vesgos enviesavam-lhe o olhar, e a voz de tiple agro-doce salgava as reticências e momices abeatadas, a que tinha a condescendência de chamar as suas boas maneiras.
Sobre o trajo profano o irmão Tomé pendurava o inseparável balandrau das almas, desbotado e roto, com um registo de S. Domingos e do Rosário cosido à murça, e um relicário de prodigioso tamanho, pendente de vistosas camândulas. Em uma das mãos trazia a salva, representando as almas do Purgatório entre chamas. A outra dava a beijar aos fiéis um nicho de porta de vidro, ralo de mealheiro por baixo, e dentro de S. João Baptista com a ovelhinha. O todo deste embirrento figurão era mais astuto do que boçal. A simplicidade era à superfície; mas por dentro tudo era velhacaria. Eis um resumo a vera efígie do Tomé das Chagas, andador das almas, primeiro servente do padre frei João dos Remédios, e sacristão da missa dos domingos e quintas-feiras no oratório de Diogo de Mendonça Corte Real, secretário das mercês de el-rei Pedro II.
Resta dizer que o lugar da cena era o adro do convento de S. Domingos de Lisboa; e a hora as sete da manhã do dia 20 de Novembro de 1706. Já se vê que o diálogo entre os dois fora matinal. Nossos avós madrugavam, porque seguiam o adágio, não dizia ele: “deita-te ao sol-posto, e ergue-te com as estrelas?” Demais, tendo a provisão do desembargo sobre o bufete, como havia o padre procurador de conciliar o sono? Depois de muitas voltas na cama, levantou-se, chegou à janela, espreitou o dia, e por fim, aos primeiros clarões da aurora, resolveu-se a tomar um banho de ar. Vestiu-se, pegou na provisão, desceu à portaria, e como o Inverno corria seco, daí a instantes tinha o gosto de tiritar de frio.
Deitando os olhos pela praça viu-a deserta. Perto do cunhal fitou os vinte e cinco infaustos arcos, que abriam sobre o Rossio, desde a Bitesga até ao adro do convento, e aumentou-se-lhe a melancolia. Tudo dormia. Nem uma das duzentas lojas portáteis, armadas debaixo deles, aparecia ainda. Ninguém pregava o toldo diante da testada dos lugares, não se movia um adelo, um capelista, ou um fanqueiro a arrumar o pano de linho, as rendas, ou as chitas da sua feira. Os próprios mariolas, tão buliçosos e activos, ressonavam profundamente nas pocilgas. Defronte do primeiro arco, ao murmúrio das águas, o Neptuno do chafariz estendia o seu tridente com marmórea indiferença». In Rebelo da Silva, A Mocidade de D. João V, volume I, Livraria Chardron de Lello & Irmão Editores Porto.

Cortesia de Lello & Irmão/JDACT