Retratos
«Neste livro vou falar do rei Sebastião. É o momento mais fantástico da
História de Portugal, porque é o mais trágico e o mais cómico. Noutro falei de
Inês de Castro, cuja beleza era uma ofensa, uma ofensa tão penosa que Afonso IV
a condenou à morte em conselho de ministros. É uma tragédia monstruosa, mas
pessoal, sem nada de cómico. Os acontecimentos que envolvem Sebastião são mais
negros, porque se estendem ao país inteiro, e mais brancos, porque provocam o
riso. Depois da morte de Inês choraram longamente as ninfas do Mondego, chorou
o rei Pedro e choraram os infantes, choraram as aias da infeliz, mas depois da
batalha de Alcácer Quibir, conhecida na História de Marrocos pela batalha dos
Três Reis, porque três reis nela participam e nela perdem a vida, carpiu
Portugal inteiro. E o degrau mais fundo da nossa História, mas também o mais
maravilhoso. O abismo de Alcácer Quibir é negro, tão negro que se vêem estrelas
hialinas e longínquas a brilharem nessa escuridão.
Inês é a dor do parto e a dor da morte, enquanto Sebastião é esta e a
da ressurreição. Inês é tão imediata como uma cantiga de amigo, enquanto Sebastião é variado como um drama
vicentino, indo do sério ao jocoso. O sangue fresco da degolação de Inês pinta
as quinas dos Afonsos, mas o de Alcácer Quibir deu a cor ao enterro de Portugal
e, o que é supino, à sua ressurreição de 1640.
Alcácer Quibir é o momento mais tenebroso da História de um povo, uma
derrota ignominiosa, uma página de luto e escuridão, feita de carne, sangue e
lágrimas, uma catástrofe gigantesca que é impossível fitar de frente, mas é ao
mesmo tempo o seu momento mais luminoso e epifânico, aquele de que se esperou
sempre salvação, vida eterna e imortalidade, tudo o que é extraordinário e
glorioso. Foi em torno da batalha de Alcácer Quibir que se escreveram as
páginas mais assombrosas da História portuguesa e que se viveram os mais
formidáveis milenarismos, desde a Cova da Beira até aos Sertões americanos,
desde os primeiros Sebastianistas populares e cristãos-novos até aos sertanejos
de Canudos no século XIX e XX. E foi assim, porque essa batalha, acontecida no
dia 4 de Agosto de 1578, tem a escuridão da morte e aluz da vida. Essa batalha
é triste e sinistra, mas é também risonha e luminosa.
Inês e Sebastião são as duas figuras marcantes da História de Portugal.
Toda a História de um povo está compreendida entre essas duas figuras. Uma abre-lhe
a porta da existência, com os vagidos da manhã, a outra cerra-lha nas costas,
com os estertores do anoitecer. As feridas de Inês foram a fonte onde Portugal
bebeu o leite da sua génese, como as de Sebastião foram o soro da sua velhice e
o novo leite da sua ressurreição ou da sua nova meninice. Tudo o que mais
importa da História de Portugal está nesse par, que é uma dupla de doidos. Inês
é uma louca de amor, com o seu rei louco de saudade, esse Pedro desvairado de
desejo e lembrança, e Sebastião, que morreu na batalha de Alcácer Quibir aos
vinte e quatro anos, sem descendência, é um louco do destino, um jogador da roleta
russa ou, o que vem a dar no mesmo, uma criança que viveu a brincar, entretendo
nos dedos a hora adversa do seu povo.
A tragédia do rei Sebastião não é apenas Alcácer Quibir, embora essa batalha
tenha o perfil de um poema trágico clássico, com a unidade de tempo e espaço e
a morte invulgar de três reis. Sebastião tem uma tragédia mais funda, mais larga,
mais antiga, mais fatal. Brilha desde a mais remota idade uma estrela funesta
sobre o seu destino. A sua adversidade foi longa, tão longa que dura até hoje».
In António Cândido Franco, A Saga do Rei Menino, a Aventura de um Menino,
ficando Encoberto na luz das estrelas…, Ésquilo, Lisboa, 2007, ISBN
978-989-8092-14-4.
Cortesia de Ésquilo/JDACT