O Contexto
Notas sobre as mentalidades nos séculos XVI e XVII
- 'Mentalidades – Utensilagem mental, de esquemas inconscientes e princípios interiorizados que dão unidade às maneiras de ser e de pensar de uma época';
- 'Sei que a minha alma tem o poder de tudo conhecer / e, no entanto, ela é cega e tudo ignora; / sei que sou um dos pequenos reis da Natureza / e, no entanto, o escravo das coisas mais baixas e vis;
- Sei que a minha vida é apenas dor e instante. / Sei que os meus sentidos me enganam como um homem / ao mesmo tempo orgulhoso e miserável'.
A vivência quotidiana do
homem de uma determinada época, o desempenho dos seus papéis tanto na vida
pública como na privada, dependem das estruturas de valores que o envolvem e
dirigem. A abundância ou a carência de bens e subsistências, as formas de solidariedade
ou de exclusão social existentes determinam as formas de sentir, pensar e agir
das comunidades. Mas é o cristianismo, como dogma, ética, prática e pedagogia,
que mais condiciona os valores, comportamentos e atitudes. Em paralelo com as
“heranças” da Idade Média, outras ideias e formas de agir se desenvolvem neste
período. Uma das novidades da Época Moderna é, antes de mais, o próprio
conceito de modernidade. O aparecimento de uma nova concepção política
de Estado. O movimento renascentista que varreu os campos da arte e da ciência.
Os ideais do Humanismo.
Nas palavras de Braudel,
‘o Renascimento afasta-se do cristianismo da Idade Média muito menos no plano
das ideias do que da própria vida (...) a sua atmosfera é a de uma alegria
viva, variada, dos olhos, do espírito, do corpo. (...) Ninguém contestará que
esta tomada de consciência das possibilidades múltiplas do homem preparou, com
grande antecedência, todas as revoluções da modernidade’.
O homem comum de
quinhentos e seiscentos vai sem dúvida sentindo e observando. Vai respirando um
novo ar, mais fresco, mais leve. ‘É raro na história os homens terem a tal
ponto um sentimento tão forte de viverem uma época feliz. Eis que ao memento
mori da Idade Média sucede o memento vivere. (...) A vida reencontra
o seu valor, o seu alcance, diz-nos o mesmo autor.
Sabemos ainda que o
movimento humanista se foi disseminando um pouco por toda a parte, todavia não
podemos falar de um assimilar generalizado e imediato de novas mentalidades e
comportamentos. Assiste-se sim à coexistência das luzes do renascimento com
algum obscurantismo medievo. A realidade em que se vive o dia-a-dia nesta
época, ainda não permite à maioria contemplar a beleza de uma peça de Da Vinci,
ler e compreender a utopia de Thomas Morus, repensar a pertinência das
revelações de Galileu, reconhecer a amplitude da estratégia de Maquiavel. Em contraponto,
ao sentimento de ‘alegria’, persistem aqueles a que Braudel chama ‘homens
tristes’, que vão ‘povoando o cenário do Ocidente’, e que representam a grande
maioria das pessoas.
O movimento da Reforma
protestante, iniciado no norte europeu, respondendo aos apelos de Lutero e
Calvino, constitui um factor incontornável deste período, que acarreta antes de
mais o questionar dos dogmas e paradigmas fundamentais da Igreja Católica. Como
consequência imediata, assiste-se a um radicalizar de posturas da parte da
Tiara, numa tentativa de refreio e controlo das dissidências, aumentando o peso
e a importância da religiosidade na vida quotidiana das pessoas. O próprio
tribunal inquisitorial surge nesta fase segundo estruturas e regras
completamente diferentes das da Inquisição (maldita) medieval, integrada no
movimento a que se convencionou designar por “Contra-Reforma”.
Terá sido ainda Braudel quem melhor definiu este continuado protagonismo da religião cristã neste período. Considerado como ‘a Idade de ouro’, os humanistas estavam, no entanto, demasiado ocupados em organizar o seu próprio reinado para pensarem em contestar o de Deus. As próprias noções de espaço e tempo são marcadas por um forte pendor religioso. A igreja e o seu adro são o centro da cidade, da vila ou da aldeia, catalisando as grandes manifestações colectivas, sejam elas religiosas, sociais ou políticas. É ali que se realizam cerimónias litúrgicas como missas e procissões. É também ali que têm lugar cerimónias profanas, como arraiais e mascaradas. É dali que partem as informações de natureza política mais importantes para a comunidade: notícias sobre o casamento do rei, sobre a sua morte e sucessão, declarações de início e fim da guerra. É ainda ali que ocorrem actos tão importantes como o arrolamento no exército ou a cobrança de impostos». In Raquel Patriarca, Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650 Dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2002.
Cortesia da U. do
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