«É um serventês moral
bem digno do visionarismo de Martin Moxa, sério e pensativo, embora mordaz e sarcástico.
Segundo Lang, compôs ele estas poesias em tempo del-rei Sancho II. Para ele, anda o mundo cada vez pior. Descem
os bons e os maus levantam-se poderosamente acima deles. Por mim, diz o poeta,
«non
ei da mia morte pavor». O mundo caminha às avessas e tudo nele anda
trocado! Por isso, não deve fugir da morte quem viu o bem que dantes era e vê o
mal de hoje. Bem-aventurados os que «morrerom mentr’ era melhor»! Que
eles dêem graças a Deus. Os que ficarem verão coisas ainda piores:
‘e poren tenh’eu que faz
sen-razon
quen deste mundo á mui
gran sabor’.
A este queixume,
segue-se outra sátira amarga, quase uma invectiva em forma de descordo: Fico-me
a olhar e tudo me dá coita e pesar. Reina a mesquinheza acima da grandeza de
alma. Reinam manhosamente neste mundo a maldade e a mentira.
mentira e maldade
non lhis dá logar;
estas son nadas
e criadas
e aventuradas
e queren reinar.
As nossas fadas
iradas
foron,...
As louvaminhas e
cantares de galhofa recebem honras e poder. Nos lugares onde nobres ditos se
ouviam, vejo eu expulsar gente honrada. Os que dizem mal, a esses acolhem-nos e
louvam-nos com muito amor. Dantes dominava o saber, tinham formoso lugar a paz
e a cortesia, quando a alegria morava no mundo. Mas ela foi-se embora, dizendo:
dia a dia, hei-de ir
faltando!
Chegara a sua hora,
fugia para se esconder.
Bem mereceu este
descordo as honras de H. R. Lang, em The
descort in old portuguese and spanish Poetry, e não menos de Luciana
Stegagno Picchio, em Martin Moay, Poesie.
É a revolta contra a decadência cultural e contra o triunfo mesquinho dos
vícios, à sombra de mecenas estúpidos.
Adiante, num serventês,
conta-nos o poeta uma ’estória’ que
serve de parábola:
- Depois de muito andar, entrei num sítio onde nem a lealdade, nem a boa manha, nem o juízo nem o saber tinham apreço de ninguém. Aí só prosperava quem gabava tudo o que o senhor da terra fazia, quem o lisonjeava, mesmo que o visse andar a semear sal. Quem ali chegar, sem mentir nem trocar o mal pelo bem, livre-se como eu me livrei. Ora, quando eu lá estava, sonhei muitas vezes que uma cerceta agarrava a poupa pelo penacho da cabeça. A cerceta, que significa ela? E como foi capaz de prender a poupa? Quem poderá interpretar-me este sonho?
Rodrigues Lapa faz deste sonho um símbolo de como os grandes poderiam
ser dominados pelos pequenos: ‘a cerceta, mais forte, começou por arrancar
a crista à popa, que acabou por vencê-la’. Teríamos um incentivo à luta
dos fracos contra os fortes opressores. Propomos outra hipótese. A cerceta (ave
palmípede, mais pequena do que o pato vulgar, mas, ainda assim, mais forte do que
a popa) segurou bem firme a ‘cresta’
da popa e dominou-a. E esta última simboliza, talvez, os que se tiram
porcamente das dificuldades. Com efeito, ajeitam-se ao querer dos fortes e
estes prendem-nos pela gloríola da amizade e dos interesses, representados no lindo
penacho de plumas. Por isso aconselha Martin Moxa a que não se desquitem como ‘eu vi
quitar alguen’. Em qualquer hipótese, temos, neste serventês, a
apologia de dignidade humana». In Mário Martins, A Sátira na Literatura
medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura,
volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.
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