terça-feira, 13 de novembro de 2012

A Sátira na Literatura Medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «… teríamos um incentivo à luta dos fracos contra os fortes opressores. … A cerceta, ave palmípede, mais pequena do que o pato vulgar, mas, ainda assim, mais forte do que a popa, segurou bem firme a ‘cresta’ da popa e dominou-a…»


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«É um serventês moral bem digno do visionarismo de Martin Moxa, sério e pensativo, embora mordaz e sarcástico. Segundo Lang, compôs ele estas poesias em tempo del-rei Sancho II.  Para ele, anda o mundo cada vez pior. Descem os bons e os maus levantam-se poderosamente acima deles. Por mim, diz o poeta, «non ei da mia morte pavor». O mundo caminha às avessas e tudo nele anda trocado! Por isso, não deve fugir da morte quem viu o bem que dantes era e vê o mal de hoje. Bem-aventurados os que «morrerom mentr’ era melhor»! Que eles dêem graças a Deus. Os que ficarem verão coisas ainda piores:

‘e poren tenh’eu que faz sen-razon
quen deste mundo á mui gran sabor’.

A este queixume, segue-se outra sátira amarga, quase uma invectiva em forma de descordo: Fico-me a olhar e tudo me dá coita e pesar. Reina a mesquinheza acima da grandeza de alma. Reinam manhosamente neste mundo a maldade e a mentira.

mentira e maldade
non lhis dá logar;
estas son nadas
e criadas
e aventuradas
e queren reinar.
As nossas fadas
iradas
foron,...

As louvaminhas e cantares de galhofa recebem honras e poder. Nos lugares onde nobres ditos se ouviam, vejo eu expulsar gente honrada. Os que dizem mal, a esses acolhem-nos e louvam-nos com muito amor. Dantes dominava o saber, tinham formoso lugar a paz e a cortesia, quando a alegria morava no mundo. Mas ela foi-se embora, dizendo:

dia a dia, hei-de ir faltando!
Chegara a sua hora, fugia para se esconder.

Bem mereceu este descordo as honras de H. R. Lang, em The descort in old portuguese and spanish Poetry, e não menos de Luciana Stegagno Picchio, em Martin Moay, Poesie. É a revolta contra a decadência cultural e contra o triunfo mesquinho dos vícios, à sombra de mecenas estúpidos.
Adiante, num serventês, conta-nos o poeta uma ’estória’ que serve de parábola:
  • Depois de muito andar, entrei num sítio onde nem a lealdade, nem a boa manha, nem o juízo nem o saber tinham apreço de ninguém. Aí só prosperava quem gabava tudo o que o senhor da terra fazia, quem o lisonjeava, mesmo que o visse andar a semear sal. Quem ali chegar, sem mentir nem trocar o mal pelo bem, livre-se como eu me livrei. Ora, quando eu lá estava, sonhei muitas vezes que uma cerceta agarrava a poupa pelo penacho da cabeça. A cerceta, que significa ela? E como foi capaz de prender a poupa? Quem poderá interpretar-me este sonho?
Rodrigues Lapa faz deste sonho um símbolo de como os grandes poderiam ser dominados pelos pequenos: ‘a cerceta, mais forte, começou por arrancar a crista à popa, que acabou por vencê-la’. Teríamos um incentivo à luta dos fracos contra os fortes opressores. Propomos outra hipótese. A cerceta (ave palmípede, mais pequena do que o pato vulgar, mas, ainda assim, mais forte do que a popa) segurou bem firme a ‘cresta’ da popa e dominou-a. E esta última simboliza, talvez, os que se tiram porcamente das dificuldades. Com efeito, ajeitam-se ao querer dos fortes e estes prendem-nos pela gloríola da amizade e dos interesses, representados no lindo penacho de plumas. Por isso aconselha Martin Moxa a que não se desquitem como ‘eu vi quitar alguen’. Em qualquer hipótese, temos, neste serventês, a apologia de dignidade humana». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT