«E ao lado, a vivência preciosa, meticulosa, gustativa, por assim dizer,
do erotismo enquanto tal. É com essa minúcia, com essa aplicação, quase
meticulosidade, que Eça cria a atmosfera erótica propriamente dita, espaço de
diferimento, de ‘suspense’ que é a
novidade e a essência de todo o erotismo e que Eça descreve como quem saboreia.
Ou nele se afoga. No Crime já vamos quase a meio do
romance e ainda não se passou nada, nada no sentido da consumação sensual, como
temia o apaixonado infeliz de Amélia, João Eduardo. Só depois de tão longa
preparação aparece o corpo do delito, menos o objecto do desejo, que o seu
objecto ideal, o Desejo em forma de
gente e, a Amélia duplamente inacessível dada a condição sacerdotal de Amaro. O
primeiro encontro é uma obra-prima do jogo erótico implícito:
- A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos. - És tu, Amélia? Uma voz disse adeusinho! Adeusinho! E apareceu, subindo quase a correr, com os vestidos um pouco apanhados adiante, uma bela rapariga, forte, alta, bem-feita, com uma manta branca pela cabeça e na mão um ramo de alecrim.
O nosso realista-mor é um impenitente simbolista. Nesta cena que é já
cinema antes da invenção dele, tão natural, tão fotografia em movimento é, Eça
inscreve o símbolo da virgindade e de uma descontraída inocência. Não durou
muito a inocência da alma, mas a virgindade imporá a lei do seu suspense canónico.
Neste ocasional primeiro encontro com Amaro, Amélia sente-se um pouco
intimidada, deixa-o passar, Amaro sobe para o quarto.
- O pároco fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura antiga dum Cristo crucificado.
É o esperado sublinhado simbólico, aqui aceitável. Sempre se trata de
um padre. Mas é também um aviso à navegação:
- Amaro abriu o seu breviário, ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos.
Como sabemos, ninguém foi tão atento ao bocejo nacional como Eça. Aqui
transparece a frieza latente do homem de Deus. Que outros sons, outras imagens
vão acordar para sempre:
- e então por cima, sobre o tecto, através das orações rituais que maquinalmente ia lendo, começou a sentir o tic-tic das botinas de Amélia e o ruído das saias engomadas que ela sacudia ao despir-se.
Esta é a primeira visão das saias de uma Elvira de um novo género, viva
e filha da Vida, figura rediviva e reiterada de uma Eva antes do pecado
original. Não será a última, mas nenhuma terá mais esta aura de nascente, casta
e popular, nem Luísa nem Maria Eduarda. Com estas saias, ainda só
adivinhadas, começa a ascensão de Amaro a um paraíso que lhe está vedado, e,
por isso mesmo, chamamos paraíso. Entrará nele e como está escrito perdê-lo-á.
Sem uma gota de remorso. Não é nenhum Iago. Apenas um bom comum pecador, mais
vítima de Eros e da sua pulsão vital que de si mesmo e da sociedade. Na sua
não-tragédia é uma figura nova da sociedade portuguesa, um herói anticamiliano por
excelência. E graças a Eros uma figura nova do imaginário português, não além
do Bem e do Mal, mas aquém.
Como Amélia sua vítima por conta de ninguém». In Eduardo Lourenço, As Saiasde
Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.
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