«Com que saudades se não
recordaria ele agora dos despreocupados tempos em que namorava a gentil menina! Como lhe não acudiriam à memória aqueles deliciosos versos com que,
fingindo uma paixão que não tinha, procurava cativar um coração só aparentemente
esquivo!
Mote
Menina formosa e crua,
bem sei eu
quem deixara de ser seu,
se vós quisereis ser
sua.
Voltas
Nos olhos e na feição
vos vi, quando vos olhava,
tanta graça, que vos dava
de graça este coração.
Não no quisestes, de crua,
por ser meu…
Se outrem vos dera o seu,
pode ser foreis mais sua.
…………………………….
Mote (alheio)
Menina dos olhos verdes,
porque me não vedes ?
Voltas
Elles verdes são,
e têm por usança,
na côr, esperança,
e nas obras não.
Vossa condição
não é de olhos verdes,
Porque me não vedes.
……………………………..
Verdes não o são,
no que alcanço delles:
verdes são aquelles,
que esperanças dão.
Se na condição
está serem verdes,
porque me não vedes?
Para a solução da mais dolorosa
crise que o poeta atravessou na sua tão atormentada vida, muito devem ter contribuído,
creio eu, as notícias que os seus amigos não deixariam de lhe mandar para Ceuta,
relativas ao próximo casamento da infanta com o herdeiro do trono de Espanha. Essa
crise, com efeito, coincide precisamente com um dos períodos em que Carlos V e
a rainha D. Leonor mais empenhados andaram em que ela casasse. Foi talvez ao receber de
Lisboa alguma carta mais circunstanciada e mais precisa sobre o assunto, que o
poeta escreveu com lágrimas de sangue este admirável soneto:
O dia em que eu naci moura
e pereça;
não o queira jamais o tempo
dar;
não torne mais ao mundo e,
se tornar,
eclipse nesse passo o sol
padeça.
A luz lhe falte, o ceu se
lhe escureça;
mostre o mundo sinais de
se acabar;
naçam-lhe monstros,
sangue chova o ar;
a mãe ao próprio filho não
conheça.
As pessoas, pasmadas de ignorantes,
as lagrimas no rostro, a
cor perdida,
cuidem que o mundo já se
destruiu.
Oh gente temerosa, não te
espantes,
que este dia deitou ao mundo
a vida
mais desventurada que se viu.
A meu ver, reportam-se também
ao tempo do exílio em Ceuta, e dele datam, as célebres redondilhas que começam Sóbolos
rios
que vão.
NOTA: Palavras de W. Storck
: ‘Anteriormente, datei esta grandiosa canção, que é, no sentir de muitos, a mais
sublime e altisonante de todas as poesias líricas do poeta, dos dias imediatos ao
naufrágio nas costas de Cambodja... Mas agora... vejo-me compelido a impugnar
aquele parecer… Penso... que as redondilhas... surgiram na mente inspirada do grande
vate durante aqueles quarenta dias em que vogava de Goa para Malaca (Abril e Maio
de 1556’. Vida de Camões: ‘Só assim compreenderemos, o ilustre camonista refere-se
aos vícios que corroíam os portugueses no Oriente, como foi que o Camões chamou
a Goa Babel da Índia ; porque é que considerava desterro a sua estada
no Oriente ; e ainda porque é que um poeta, que até então cantara o seu amor, se
sentou melancolicamente sonhando nas ribeiras de Babel, isto é, nas margens goenses,
entoando, em vez de cânticos de Zião, ou canções trovadorescas, apenas versos
lutuosos de desolação e desconforto’.
Inspirando-se no belo salmo
136, o poeta dá-nos conta de duas fases por que ali passou o seu espírito,
relativamente à infanta.
NOTA: Assim se lastimam os
judeus cativos nas margens do Eufrates. Lêa-se agora a primeira quintilha de Camões:
Sóbolos rios que vão / por Babylonia, me achei,
/ onde sentado chorei / as lembranças de Sião / e quanto nella passei.
Que é, porém, Babylonia?
Que são os seus rios? Que é Sião? Dizem-no estas estancias (2.ª e 9.ª): Alli um rio corrente /de meus olhos foi manado,
/ e tudo bem comparado: /
Babylonia ao mal presente, / Sião ao tempo passado.
Bem são rios estas aguas, / com que banho este papel; / bem parecem ser
cruel / Variedade de maguas / e confusão de Babel.
Babylonia é a amargurada
situação do poeta, ao escrever no exílio as incomparáveis redondilhas (assim lhes
chama também W. Storck, Sião são as doces lembranças do tempo passado na pátria.
Alli lembranças contentes / na alma se representaram,
/ e minhas cousas ausentes / se fizeram tão presentes, / Como se nunca passaram.
A primeira é o propósito
de não mais entoar cânticos d’amor, muito embora nunca haja de esquecer aquela que
os havia inspirado. Isto é: o poeta desiste das suas pretensões, mas guardará
no coração a imagem da bem-amada.
Como homem que, por exemplo
dos transes em que se achou,
despois que a guerra deixou,
pelas paredes do templo
suas armas pendurou:
Assi, despois que assentei
que tudo o tempo gastava,
da tristeza que tomei,
nos salgueiros pendurei
os órgãos com que cantava.
Aquelle instrumento ledo
deixei da vida passada,
dizendo: musica amada,
deixo-vos neste
arvoredo,
Á memoria consagrada.
Frauta minha, que, tangendo,
os montes fazíeis vir
para onde estáveis, correndo,
e as aguas, que iam descendo,
tornavam logo a subir.
Jamais vos não ouvirão
os tigres, que se amansavam,
e as ovelhas, que pastavam,
das hervas se fartarão,
que, por vos ouvir, deixavam.
Já não fareis docemente
em rosas tornar abrolhos
na ribeira florecente,
nem poreis freio á corrente,
e mais se for dos meus olhos.
Não movereis á espessura,
nem podereis já trazer
atrás vós a fonte pura,
pois não pudestes mover
desconcertos da ventura.
Ficareis offerecida
á Fama, que sempre vela,
frauta, de mi tão
querida,
porque, mudando-se a vida
se mudam os gostos delia.
…………………………………..
In
José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.
continua
Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de
Coimbra/JDACT