terça-feira, 6 de novembro de 2012

Década Quarta da Ásia. Diogo do Couto. «Quem tinha na ideia Os Lusíadas? Lopo Vaz ou Diogo do Couto? O primeiro não pode ser. A sua apologia teria sido recitada, ainda Luís Vai não completara dez anos. O governador-usurpador morreu, antes de o poeta ter começado o seu poema»


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Introdução à leitura da Década Quarta de Diogo do Couto
[…]
«Lucena volta a marcar distâncias: se é verdade... Couto não duvida do que escreve. Como o sabe? Viu? Lucena, esse leu. Se é verdade, como temos lido... Onde terá lido? Como? Quando? Em que condições?
A epístola dedicatória da sua Década 4, datou-a Couto de 20 de Novembro de 1597, vésperas de dar à vela para o reino a armada da carreira. Terá chegado a Lisboa em meados de 1598. Entretanto Filipe II decidira fazer publicar, primeiro que a continuação de Barros, as quatro Décadas do que tinham feito os próprios castelhanos naquelas partes das Índias. Compreende-se. E, enquanto a de Couto esperava, ao cuidado de Adeodato ou de outro, ou de outros, alguém no segredo dos livros e papéis do Oriente, terá assinalado ao de Trancoso que chegara de Goa um novo manuscrito com muitas coisas interessantes. Não duvidamos de que Lucena, cujo livro saiu em 1600, o tenha tido em mãos. Quando escreve sobre a sede do cravo, à fé do tem lido [se é verdade o que temos lido], o que tinha lido era certamente na Década 4 de Diogo do Couto.
Nenhum outro autor tinha escrito que o dito produto das Molucas secava as adegas e enxugava as casas. Assim se atenua a gravidade dos ‘plágios’ de Couto. Quem escrevia da Ásia inseria-se numa teia. Quem copiava era copiado. É verdade, porém, que, entre os copiadores, o novel cronista não fica atrás de nenhum.
Depois voltaremos à paráfrase d’Os Lusíadas... Planeámos atrás. Chegou o tempo. Apologia de Lopo Vaz, texto que só Diogo do Couto fornece. O apelo do maltratado a que se meçam a injustiça que se lhe faz, a desproporção entre os seus serviços e esses maus tratos não deixa de ter afinidades com os mesmos sentimentos expressos por Camões. Palavras de Lopo Vaz: ‘Veja Vossa Alteza, e ponha diante de si, tamanho agravo como este a um homem de minha qualidade e idade e de tantos e tao grandes serviços’; ‘E ainda, Ninfas minhas, não bastava...’ vem no canto 7; ‘Vede, Ninfas...’ Torna a pedir o poeta... Os que Lopo Vaz servia, maltrataram-no, agravaram-no, prenderam-no... Os que Camões cantava, meteram-no em trabalhos, reduziram-no a um estado imerecido e lamentável. N’Os Lusíadas:...

‘Aqueles que eu cantando andava
tal prémio de meus versos me tornasssem,
a troco dos descansos que esperava,
das capelas de louro que me honrassem,
trabalhos nunca usados me inventaram
com que em tão duro estado me deitaram’.

Lopo Vaz, segundo Couto: ‘Ora, veja Vossa Alteza o que me tem custado seu serviço...’. O que lhe tem custado? Aqui, a afinidade torna-se mais estreita: ‘muitos frios, muitas calmas, muitas fomes e sedes, muitos riscos de minha vida, dando a comer meu sangue aos tubarões no mar...’ No primeiro canto: “Ó grandes e gravíssimos perigos!” No último, a famosa estrofe 147:

‘Dando os corpos a fomes e vigias,
a ferro, a fogo, a setas e pelouros.
A quentes regiões e plagas frias,
[...] A naufrágios, a peixes, ao profundo’.

Frios e calmas, na Década; quentes regiões e plagas frias, no poema. Fomes e sedes, na Década; fomes e vigias, no poema. Dar o sangue aos tubarões, na Década; dar o corpo aos peixes, no poema…
Quem tinha na ideia Os Lusíadas? Lopo Vaz ou Diogo do Couto? O primeiro não pode ser. A sua apologia teria sido recitada, ainda Luís Vai não completara dez anos. O governador-usurpador morreu, antes de o poeta ter começado o seu poema. Donde uma inevitável conclusão:
  • se a influência e até a paráfrase d’Os Lusíadas neste passo não são um sonho, o documento respectivo, apologia de Lopo Vaz, não pode ser integralmente verdadeiro. Na mais favorável das hipóteses, Couto não teria apenas encurtado a fala. Tê-la-ia também rescrito, retocado, enfeitado...
Guerra de Heitor da Silveira na costa de Cambaia. Um peão português derriba dois cavaleiros mouros, e, trazendo um dos cavalos à rédea, apresenta-se ao nosso capitão, pedindo-lhe que o arme cavaleiro». 

In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Coimbra Martins, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.

continua