Nota: De acordo com o
original
«Senão quando, uma ideia
lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou ao chão a manta e o marmeleiro,
e puxando para deante o bornal, feito da pelle de uma ovelha branca, morta
pelas segadas, tirou de lá a sua flauta e pôz-se a tocar apressadamente um
trecho de cantiga rustica. No mesmo instante, uma voz muito sonora gritou-lhe:
--Ehlà, Gonçalo, és? O
pastor desatou a rir.
--Uhlá, Rosaria, eu
mesmo! Guarde-te Deus, pimpona! E logo a voz fresca da rapariga lembrou:
--Não te esqueceu a
moda, rapaz!
--Isso esquece ella!...
Ouviste, Rosaria?--Se outra fosse que m’a tivesse ensinado...
N'este meio tempo já o
Gonçalo retomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Rosaria. Mas primeiro
perguntou:
--Boto pela ponte, ou és
tu que vens, ó cachopa?
--Vem tu d'ahi. Por cá
sempre é outra coisa p'r'as ovelhas. Han?
--Basta!
E dando o signal da
partida, o Gonçalo pôz-se em marcha. D'ahi a pouco, entrava mais o rebanho pela
velha ponte moirisca, toda severa de construcção nos seus tres arcos lançados
sem elegancia, atufados de parasitas seculares que a faziam pittoresca, heras,
silvas, ortigas bravas.
A meio da ponte, mão
piedosa fizera construir pequeno oratorio ao Senhor Salvador, cujo rosto
sereno, espreitando por grades de arame, diziam dar coragem a barqueiros e
almocreves, que ante o pequeno e humilde nicho com respeito se descobrissem, e
com devoção rezassem uma velha prece que era como um talisman precioso para
livrar de maiores desgraças, naufragios no rio, e então maus encontros por
aquelles caminhos escabrosos, que eram um perigo constante para homens e
animaes. D'ahi a pouco, as duas creanças estavam perto uma da outra, cada qual seguida
do seu rebanho.
--Ora viva a
Rosaria!--disse o pastor muito alegre, parando defronte da cachopa.
--Bons dias, Gonçalo;
então que ventos?
Entre os dois travou-se
então um longo dialogo em que se contaram tudo o que haviam feito desde aquelle
dia em que ambos tinham voltado juntos da feira dos Caniços.
--Por signal que nem rez
se vendeu!--lembrou o Gonçalo. --Por signal!--disse com pena a Rosaria. Mas
elle contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na fé que a
encontrava. «Vêl-a agora, só por milagre de santo; quem o havia de sonhar!
Nanja elle...»
--Mas se eu estive tão
doente!--volveu triste a Rosaria.
E como o outro acudiu a
informar-se, ella explicou:
--Umas quartãs que me
tiveram mondada! A peste as mate! Febre que era mesmo lume desde manhã até ao
escurecer... Uma assim!
E na sua ingenuidade
infantil, contou ao Gonçalo que muitas vezes, na febre, sonhara com elle, que
se encontravam os dois por montes e prados, como agora tinha acontecido, «tal e
qual».
--Assim te Deus salve, ó
Rosaria?--atalhou rapido o pastor, a quem enchiam de orgulho os sonhos
d'aquella pequena amiga. --Assim; pois que duvida?--tornou-lhe confiada a
Rosaria.
--Não!--disse agastado o
Gonçalo.--Não has-de dizer assim... Diz certo, has-de jurar direito. --Pois
assim me Deus salve...
--Como é verdade...--Diz tudo, Rosaria!--supplicava o pastor.
-Sim, volveu-lhe
paciente a companheira,--como é verdade que sonhava que nos
encontravamos--concluiu por fim, muito risonha. E sem disfarçar o jubilo,
prestes o Gonçalo a certificou de que também não a esquecera. ‘Tanto
é que tirava da frauta as cantigas todas que ella lhe tinha ensinado’.
--Lembras-te?
A Rosaria faz que sim
com a cabeça. E logo, batendo na frauta de sabugueiro, o pastor apressou-se a
declarar:
--Sahem d'aqui sem
falhar uma.--E resoluto:--Vá feito, Rosaria, pede por bocca!
A Rosaria pediu então a Pastorinha.
--Eu é da que mais
gosto,--explicou.--É a mais linda. --E é!--concordou o Gonçalo.--Ora escuta lá.
E levando aos labios a avena, pôz-se a tocar a Pastorinha, emquanto a Rosaria,
com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a lettra:
Onde vás, ó Pastorinha,
Ai-li, ai-li, ai-li,
ai-lé...
--Sabes essa! É mesmo
assim!--disse-lhe a Rosaria a rir-se. --É como vês!--affirmou contente o
Gonçalo. Aos seus pés tinham-se deitado os rafeiros, e já os dois rebanhos, confundidos,
andavam na pastagem.
--Olha as ovelhas
juntas!--notou o Gonçalo. --Tambem nós nos quedámos juntos,--volveu-lhe a pequena,
sorrindo.—As pobres dão-se bem, são amigas...--continuou com jubilo. --E nós
tambem, ora tambem, Rosaria?
--Tambem--respondeu
afoita a pastora.
E foram-se ter conta no
rebanho, que choviam as coimas e as denuncias». In Trindade Coelho, Os Meus
Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de
Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª
edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.
Cortesia de P.
Gutenberg/JDACT