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«Enquanto, de Ormuz a Malaca, as armas portuguesas ganhavam
muitas batalhas, a honra e a dignidade de Portugal eram repetidamente ultrajadas,
com perfeita impunidade pelos menos poderosos chineses, porque as forças navais
e militares necessárias para manter o prestígio da nação na China não podiam
ser destacadas, sem sérias consequências, de um domínio permanentemente
ameaçado que a bravura impulsiva de uma mão-cheia de heróis alargou até às
dimensões assumidas e demasiado difíceis de manter com os fracos recursos a
esse cometimento destinados. E por entre constantes apuros, o governo português
não só abandonou o projecto de construir uma fortaleza na China como, depois do
revés de Tamou, também tratou os interesses prospectivos naquele império com
uma indiferença fatal. Por outro lado, embora privados de apoio estatal, alguns
intrépidos aventureiros portugueses ainda desafiaram o exclusivismo e as barbaridades
de um povo necessitado de outra Grande Muralha para resguardar o seu isolamento
agora ameaçado desde o mar.
Segundo o Tratado da China, de Gaspar da Cruz,
os chineses que emigraram em contravenção às suas leis dependiam dos
portugueses para manter a comunicação com a China, forneciam-lhes guias e
auxiliares, e, depois do imbróglio de Andrade levaram-nos a Liampó (Ningpo),
onde os mandarins, largamente subornados, faziam vista grossa ao comércio proibido,
que, com o passar do tempo se estendeu a Chincheu, chegando a restabelecer-se
às próprias portas de Cantão. Possivelmente os portugueses que haviam chegado
até Nanquim fixaram-se em Liampó.
Aí, tinham tudo menos pelourinho e forca
através de procedimentos ilegais, alguns dos quais chegaram ao conhecimento do
imperador que mandou uma frota, equipada em Foquien, correr com os ladrões,
especialmente os de Liampó. Seguiu-se uma longa contenda em Chincheu: não era
feita distinção entre bandidos e gente honesta e os comerciantes portugueses,
constantemente hostilizados, estavam prestes a abandonar a costa quando, por
uma sugestão particular, resolveram os problemas com os chefes chineses,
oferecendo-lhes ricos presentes. Mais tarde, contudo, a frota retomou uma
rigorosa vigilância. Um hábil ardil resultou na captura de dois juncos
portugueses de mercadorias, cujos tripulantes, desafiados pelas pessoas que estavam
em terra, desavisadamente desembarcaram para lutar; e enquanto eram ardilosamente
afastados os seus navios foram capturados por uma esquadra que saíra rapidamente
de trás dum promontório nas cercanias. O mandarim que urdiu o plano ficou
delirante e, pela divisão do espólio, assegurou a conivência dos outros no sentido
de conseguir uma promoção oficial. Passeou em parada os portugueses que tinham
sido feitos prisioneiros: a maior parte ia em jaulas e quatro deles, de manto e
chapéu, eram transportados em cadeiras, ladeados de estandartes e trombetas e
apresentados como reis de Malaca capturados numa grande batalha. No meio de muita
alegria popular o espectáculo foi de cidade em cidade, espalhando aos quatro
ventos a fama do mandarim. Para que a impostura real não pudesse ser divulgada
os auxiliares chineses dos juncos foram quase todos executados. Os gritos de
desespero soltados pelos familiares provocaram, finalmente, um inquérito
oficial por um alto funcionário de Pequim, que castigou o mandarim responsável
e libertou a maioria dos prisioneiros, apesar dos persistentes esforços para
frustrar os objectivos da justiça e incriminar os portugueses como ladrões.
Da leitura de outro relato contemporâneo, a famosa Peregrinação de Mendes Pinto, ressalta que Liampó foi sempre considerada como a mais bonita, a mais rica e a melhor abastecida colónia que os portugueses tiveram na Ásia, um município oficializado como cidade portuguesa e intitulado, nos testamentos e escrituras, Esta muy nobre e sempre leal cidade de Liampó, pelo Rey nosso senhor, como se se situasse em Portugal. A colónia atingiu o auge da sua prosperidade depois da descoberta do Japão». In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926, Macau Histórico, 1ª edição em Português, 1990, Livros do Oriente, Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.
Cortesia da F. Oriente/JDACT