segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Naomi (Chijin No Ai, 1924). Junichirö Tanizaki. Leituras. «Quando um dia perguntei como se chamava, soube que o seu verdadeiro nome era ‘Naomi’, escrito com três caracteres chineses. O nome estimulou a minha curiosidade. Um esplêndido nome, pensei; escrito em alfabeto latino, podia ser um nome ocidental»


Depois do Banho, 1917, Itö Shinsui
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«Vou tentar narrar os factos da nossa relação como marido e mulher tal como aconteceram, com a maior honestidade e franqueza que me é possível. Trata-se, talvez, de uma relação sem precedentes. O seu relato proporcionar-me-á um registo precioso de uma coisa que não quero esquecer nunca. Ao mesmo tempo, estou certo de que o acharão também instrutivo. À medida que o Japão se torna cada vez mais cosmopolita, japoneses e forasteiros vão-se misturando avidamente uns com os outros; são introduzidas novas doutrinas e filosofias de toda a espécie; e tanto os homens como as mulheres adoptam as modas ocidentais actuais. Sendo os tempos como são, o estilo de relacionamento conjugal que temos tido, e de que até agora nunca se ouviu falar, começará sem dúvida a surgir por todo o lado.
Olhando para trás, vejo que fomos um par estranho desde o início. Foi há cerca de sete anos que conheci a mulher que é agora minha esposa, embora não me recorde da data exacta. Nesse tempo ela era recepcionista num sítio chamado Café Diamante, perto da porta Kaminari do templo Asakusa Kannon. Estava apenas no seu décimo quinto ano e começara a trabalhar quando a conheci. Era uma principiante, uma aprendiza, uma recepcionista em botão, por assim dizer, e não ainda uma empregada competente.
Não compreendo porque eu, um homem de vinte e oito anos, pus os olhos numa criança como aquela, mas é possível que inicialmente tenha sido atraído pelo seu nome. Todos a tratavam por ‘Nao-chan’.
Quando um dia perguntei como se chamava, soube que o seu verdadeiro nome era ‘Naomi’, escrito com três caracteres chineses. O nome estimulou a minha curiosidade. Um esplêndido nome, pensei; escrito em alfabeto latino, podia ser um nome ocidental. Passei a dar-lhe uma atenção especial. Estranhamente, logo que a soube possuidora de um nome tão sofisticado, ela começou a adquirir um ar ocidental, inteligente. Comecei a pensar que seria uma pena deixá-la continuar como recepcionista num sítio daqueles.
Na verdade, Naomi parecia-se com a actriz de cinema Mary Pickford; havia de facto algo de ocidental na sua fisionomia. Não se trata apenas de uma opinião preconceituosa; muita gente diz isso, mesmo agora que ela é minha mulher. Deve ser verdade. E não é apenas o rosto; até o corpo tem uma aparência claramente ocidental, quando ela está nua. Só mais tarde pude observar isso, é claro. Nessa época, podia apenas imaginar a beleza do seu corpo pela maneira elegante como lhe assentava o quimono.
Não posso falar com nenhuma exactidão da sua disposição no tempo em que trabalhava no café; só os pais ou uma irmã podem compreender os sentimentos duma rapariga de quinze ou dezasseis anos. Se hoje lho perguntassem, a própria Naomi diria provavelmente que se limitava a fazer o que tinha a fazer, com indiferença. Para um estranho, porém, parecia ser uma menina sossegada e triste. O rosto tinha um ar doentio. Era pálido e mortiço como uma vidraça transparente e incolor; como mal começara a trabalhar, ainda não usava a mesma maquilhagem branca das outras recepcionistas, e não conhecia os clientes nem as colegas. Tinha tendência a esconder-se num canto enquanto fazia o seu trabalho em silêncio e com nervosismo. Podia também ser por isso que parecia inteligente.
Agora, devo fazet a minha própria apresentação. Nesse tempo eu era engenheiro numa firma de electrotécnica, e tinha um salário mensal de 150 ienes. Nasci em Utsunomiya, distrito de Tochigi. Depois de completar o ensino secundário vim para Tóquio, onde me matriculei na escola técnica superior, em Kuramae. Comecei a trabalhar como engenheiro logo após a licenciatura e todos os dias, excepto ao domingo, me deslocava da pensão onde morava, em Shibaguchi, para o escritório em Oimachi.
Vivendo sozinho numa casa de hóspedes e ganhando 150 ienes por mês, tinha uma vida bastante fácil. Embora fosse o filho mais velho, não tinha nenhuma obrigação de enviar dinheiro aos meus pais ou irmãos. A minha família dedicava-se à agricultura em larga escala; como o meu pai já falecera, a minha idosa mãe e um casal de tios fiéis tratavam de tudo por mim. Eu era completamente livre. Todavia, isso não significa que levasse uma vida desregrada. Era um empregado de escritório exemplar: sóbrio, sério, excessivamente formal, insípido até, fazia o meu trabalho todos os dias sem a mais pequena queixa ou desagrado. No escritório, ‘Kawai-Joji’ era conhecido como um ‘cavalheiro’.
Para me distrair, ia ao cinema à noite, dava uma volta pelo Ginza, ou, uma vez por acaso, permitia-me uma ida ao Teatro Imperial. Foi o máximo que alguma vez fiz. Obviamente, sendo jovem e solteiro, não tinha nada contra a companhia de mulheres jovens. Como no íntimo continuava a ser um campónio, era desajeitado com as pessoas e não tinha amizades do sexo oposto, o que, sem dúvida, era o que fazia de mim um ‘cavalheiro’. Mas era um cavalheiro apenas à superfície. Todas as manhãs, quando ia no eléctrico, e sempre que caminhava pela cidade, aproveitava em segredo todas as oportunidades para observar de perto as mulheres. De vez em quando, deparava com Naomi». In Junichirö Tanizaki, Naomi (Chijin No Ai, 1924), Relógio D’Água, 2007, Lisboa, ISBN 978-972-708-943-7.

Cortesia de Relógio D’Água/JDACT