[…] E que isto é o que lhe ao presente lembra; que, lembrando-lhe outra
alguma coisa mais que ele o dirá. E que isto é verdade pelo juramento que
recebido tem e que o diz por descargo de sua consciência e por serviço do Nosso
Senhor e não por ódio nem inimizade que tenha a nenhum dos susditos, porque lho
não tem, mas por assim passar na verdade. E al não disse. Foi-lhe mandado ter
segredo, sob cargo do juramento que recebido tinha e ele assim o prometeu, e
assinou aqui com o dito senhor inquisidor. Garcia Lasso, notário apostólico e
da Santa Inquisição (maldita) que o escrevi.
As quais culpas, eu Manuel Antunes,
Notário Apostólico e deste Santo Ofício (maldito) da cidade de Lisboa e seu distrito
trasladei, bem e fielmente das que ficam em a casa do segredo desta dita
cidade, com a entrelinha que sai à margem que diz ‘disse que eram sobre toda a Sagrada Escritura’, a qual fiz na
verdade; e concordam de verbo ad verburn com as outras de
que as trasladei. E por assim ser, as concertei com o notário abaixo subscrito
e ambos as assinamos de nossos sinais rasos. Em Lisboa, aos nove de Abril de
mil quinhentos e setenta e um anos. Manuel Antunes, concertado comigo, Jonnnes Velho, notário.
Foram tirados e concertados dos próprios
originais, bem e fielmente, por mim, dito notário, por mandado do senhor inquisidor
e por certeza de verdade assinei de meu sinal raso. Garcia Lasso, notário
apostólico e da Santa Inquisição (maldita) que o escrevi. Não faça dúvida a
entrelinha que diz coisas, e os mal
escritos que dizem terano, meses, lybro - Garcia Lasso.
Pronúncia
Foram vistos estes autos na Mesa do
Conselho Geral do Santo Ofício (maldito), estando presentes os inquisidores e
pareceu que as culpas de Damião de Goes eram obrigatórias a
prisão e que fosse preso, com todo o resguardo que convém a sua pessoa, e para se
lhe tomarem os livros luteranos que se presume que terá. E que contra frei
Roque, por ser defunto, se não procedesse por não haver prova inteira, conforme
ao Regimento. Em Lisboa, ao derradeiro de Março de 1571. Manuel de Quadros.
3.ª Denúncia de mestre Simão Rodrigues contra Damião de Goes e contra
frei Roque de Almeida
Aos 24 dias do mês de Setembro de mil quinhentos e cinquenta anos, em
Lisboa, na Casa do Despacho da Santa Inquisição (maldita), estando aí o
reverendo padre mestre, frei Jerónimo da Azambuja e o doutor Ambrósio Campelo,
deputados da Santa Inquisição (maldita), mandaram vir perante si a mestre
Simão, reitor do Colégio de Jesus, e lhe deram juramento dos Santos Evangelhos
e lhe fizeram pergunta se era lembrado de, seis ou sete anos a esta parte,
dizer alguma coisa, no Santo Ofício da Inquisição (maldito), de algumas pessoas
que andavam apartadas da fé e seguiam os erros luteranos.
Disse que é lembrado testemunhar o que sabia disso diante do licenciado
Pedro Álvares de Paredes, inquisidor de Évora, onde dissera o que sabia de Damião
de Goes e de frei Roque de Almeida, frade de S. Francisco, de coisas que
lhes ouvira, havia já muito tempo, em Pádua e em Veneza, e que tudo se acharia
escrito em seu testemunho; e que, por haver muito tempo que testemunhara, terá
trabalho em tornar a recompilar tudo. Que pedia lhe lessem seu testemunho porquanto
nele dissera todo o que sabia, e que se lhe agora mais lembrar que ele o dirá.
E lhe foi logo lido e declarado todo seu testemunho, que tinha dado
perante o dito inquisidor de Évora, dos sobreditos Damião de Goes e frei
Roque. E por ele mestre Simão foi dito que aquele era seu testemunho e que
assim se passara na verdade, como nele tinha dito e declarado. E disse ele
testemunha e declarou que, no artigo onde diz saber ele testemunha que Damião
de Goes tinha autoridade entre os luteranos, que isto não sabia por
outra razão, somente por ele Damião de Goes lhe falar em muitos
dos luteranos, e amostrar que tinha com eles amizade. E que lhe não lembra o
nome dos luteranos, salvo de Simão Grineus. E que assim dizia, lembrando-lhe
mais que indo ele testemunha um dia, em Pádua, em casa do dito Damião
de Goes, no tempo que tem dito em seu testemunho, estando aí o padre
frei Roque d’Almeida, só sendo ausente o dito Damião de Goes, o dito frei
Roque o convidou, em um dia defeso pela Igreja, com coisas defesas que, a seu
parecer, eram queijos frescos; e insistiu muito com ele testemunha que comesse.
E que ele nunca quisera comer. E que também lhe parece que o dito frei Roque
comia carne e que estava mal disposto. E que parece a ele testemunha que ainda
que o fizesse por sua má disposição, o fazia por lhe parecer que o podia fazer
por as coisas que com ele tinha praticado. E disse mais ele testemunha, que,
estando em Pádua, no tempo que tem dito, em casa do dito Damião de Goes,
disputaram um dia ambos a saber: ele e Damião de Goes, sobre a certeza da
graça, segundo sua lembrança. E que ele testemunha lhe alegou uma autoridade de
São Paulo, de uma das Epístolas a Coríntios, a qual, ao presente, lhe não lembra;
e fazia, segundo parece, ao seu propósito, dele Damião de Goes. A qual
ele testemunha dissera para lhe mostrar que aquela fazia mais a seu propósito que
a que ele dizia, mas que nem uma nem outra provavam o que ele Damião
de Goes dizia. A qual autoridade ele Damião de Goes alegava, depois, muitas
vezes contra ele testemunha; e que em esta disputa o dito Damião de Goes dizia que
os homens podiam ser certos que estavam em graça. E al não disse. E que lhe não
lembrava do que dito tem, nem que os sobreditos mais declarassem suas tenções
do que ele testemunha tem declarado em o dito seu testemunho. E do costume
disse que é amigo dos sobreditos; e foi-lhe mandado ter segredo sob cargo de
juramento. António Rodrigues o escrevi. - Frei Jerónimo d’Azambuja. Mestre
Simão. Ambrosius»
In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição, Assírio &
Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT