«Os espíritos moços, como sempre, viviam os acontecimentos com
intensidade, despertavam para as preocupações mais fundas, auscultavam o futuro
cheios de optimismo, uniam-se para pensar. Foi desse ambiente que nasceu a União Cultural Mocidade Livre. O futuro
imediato não correspondeu às aspirações e impaciências desses espíritos juvenis
e ardentes. O desenvolver da vida social europeia seguiu por caminhos que
haviam de provocar a revisão de muitos optimismos fáceis e, em contrapartida,
fazer abrir muitos olhos para realidades cruéis, em suma, proporcionar grandes
lições. Tudo isso fez que se amortecessem alguns entusiasmos das primeiras
horas. Que importa? É essencial que tenham existido! Mas foram mais algumas
ilusões perdidas, dir-se-á. Não. As ilusões
nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos
povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua
impotência para compreender e agir; perdidos são aqueles períodos da história
em que os melhores, gastos e cansados, se retiram da luta, sem enxergarem no
horizonte nada a que se entreguem, caída uma sombra uniforme sobre o pântano
estéril da vida sem formas. Benditas as ilusões, a adesão firme e total a
qualquer coisa de grande, que nos ultrapassa e nos requer. Sem ilusão, nada de
sublime teria sido realizado, nem a catedral de Estrasburgo, nem as sinfonias
de Beethoven. Nem a obra imortal de Galileu.
Quis a União
Cultural Mocidade Livre que, neste seu primeiro acto público, eu lhe prestasse
a minha colaboração, dizendo-vos algumas palavras acerca da sua razão de ser,
da necessidade da sua existência, das suas intenções de acção futura. Aceitei,
se bem que me não tenha proposto fazer-vos a apresentação desse organismo que,
em boa hora, alguns espíritos moços decidiram fundar. Essa apresentação está
sobejamente feita pelo simples facto da sua constituição, e a junção feliz, no
seu próprio nome, das duas palavras «cultura» e «mocidade» abre horizontes rasgados
para a esperança daqueles que, não tendo desesperado de viver melhores dias, vêem
precisamente numa renovação espiritual da geração nova a condição indispensável
para a realização das ideias que lhes são caras.
Quero afirmar aqui a
minha inteira solidariedade com estes moços que pretendem compreender e viver o
seu tempo e trazer-lhes, do mesmo passo, a minha modesta contribuição para o
seu labor que será fecundo, na medida da força e poder de sinceridade que
puserem, através ainda das maiores dificuldades, em se conservarem iguais a si
mesmos, fiéis a si mesmos. Esta foi a intenção com que aceitei o encargo que me
cometeram. Encargo pesado, pois não é fácil tarefa o alguém abalançar-se hoje a
emitir juízo, por mais despretensioso que ele deseje ser, sobre o tempo que
vivemos. Mas não há também tarefa mais importante nem mais urgente. O que o
mundo for amanhã, é o esforço de todos nós que o determinará. Há que resolver
os problemas que estão postos à nossa geração e essa resolução não a poderemos
fazer sem que, por um prévio esforço do pensamento, procuremos saber, por uma
análise fria e raciocinada, quais são esses problemas, quais as soluções que
importa dar-lhes – saber donde vimos, onde estamos, para onde vamos.
E pensemos, agora que
ainda o podemos fazer. Amanhã pode ser tarde, porque a tempestade que tem vindo
a acumular-se sobre as nossas cabeças pode desencadear-se e arrastar-nos nos
seus turbilhões brutais. A violência da borrasca não nos permitirá que façamos
mais do que gestos elementares e instintivos que só não nos trairão se forem, a
todo o momento, orientados e dominados por uma personalidade de uma só peça,
aquela personalidade que agora temos de forjar – enquanto é tempo. O dizer-se
que a época actual é caracterizada essencialmente por uma perturbação e inquietação
vivas, é já quase um lugar comum, de tal maneira isso se impõe, mesmo após o mais
superficial exame. Não é, contudo, demasiado repeti-lo, pois há muitos sujeitos
de ouvido duro que ainda o não compreenderam ou não quiseram compreender e que,
numa cegueira teimosa, continuam a querer aplicar, para medida de valores numa
sociedade abalada nos seus fundamentos, aqueles padrões cujo uso já de há muito
não é legítimo.
Desenganem-se essas
pessoas. O que estamos actualmente vivendo e sofrendo não é apenas uma
borbulhagem fugaz, destinada a passar como tantas coisas passam, sem deixar sinal;
é, muito pelo contrário, uma época de transição, uma ponte de passagem entre
aquilo que desaparece e o que vai surgir. E nessa ponte de passagem chocam-se
todas as correntes, coexistem todas as contradições, fazendo dela aparentemente
uma feira de desvarios e, na realidade, um formidável laboratório de vida». In
Bento de Jesus Caraça, 1933, União Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova, 1939.
continua
Cortesia de Seara Nova/JDACT