quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Antero ou a Noite Intacta. Eduardo Lourenço. «Na verdade, é por causa deste estatuto e do que ele representa que suscitou recusas, explícitas ou implícitas. Recusas ou reticências nunca lhe faltaram em vida, não só dos que passam por seus inimigos ou adversários no campo das ideias»


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(I)recuperável Antero
«[…] como o arquétipo de uma classe humilhada incapaz de levar a sua revolta mais além que a consciência imediata, só podia nascer à sombra de um desses mediadores da revolta em “espírito”, esses cruzados da utopia que são os intelectuais dignos desse nome. E quem, em Portugal, o foi, mais que Antero?

‘Há em nós todos uma voz íntima que protesta em favor do passado, quando alguém o ataca; a razão pode condená-lo; o coração tenta ainda absolvê-lo’. In Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, 1871.

Por distracção ou bondade de alma, a nossa memória cultural é pouco conflituosa. As dissidências da vida, o tempo as aquece e minimiza. Santo de tempos de orfandade, ou presença culpabilizante no nosso idílico jardim da alma, Antero parece gozar, sem sobressaltos, da sua merecida imortalidade. Mas é um engano e nesse engano há mais vida e verdade que na glorificação obrigatória dos manuais. A cem anos da sua voluntária morte, Antero ainda tem inimigos. E merece tê-los. O horror seria que os não tivesse. Declarados, não são muitos. Em filigrana, são mais do que se imagina e, entre eles, vários candidatos a heróis que suportam mal que Antero tenha sido o primeiro deles nos tempos modernos.
Na verdade, é por causa deste estatuto e do que ele representa que Antero suscitou recusas, explícitas ou implícitas. Recusas ou reticências nunca lhe faltaram em vida, não só dos que passam por seus inimigos ou adversários no campo das ideias, como dos seus próprios companheiros de geração. A visão unanimista da Geração de 70, que tem nele o seu ícone cultural, esconde mal os conflitos, os antagonismos, as rivalidades, surdas ou proclamadas que, como a matéria viva, a atravessaram. Nada de mais natural, Antero surgiu na ribalta como nosso justiceiro, nosso guerreiro, o olhar dos outros ampliou e deformou mesmo uma imagem em que cedo não se reconheceu, mas que terá de pagar até ao fim.
Nem é, de excluir que o seu trágico fim não se possa relacionar com as dificuldades de assumir a juvenil armadura de herói. Mas o que interessa, em termos de mitologia cultural, a cem anos de distância, não é a peripécia subjectiva das inimizades que suscitou, nem sequer das reticências críticas que tal aspecto da sua obra ou tal atitude política suscitaram no seu tempo ou depois. Hoje nem é sequer como referência simbólica, se não carismática, da ideia socialista, com maior ou menor repercussão no destino da sua vida e mesmo da sua obra, que Antero é ainda sinal de contradição. As reticências ou recusas em relação a Antero visam-no como símbolo de uma revolução cultural que nem é de natureza literária, nem política, nem mesmo ideológica ou banalmente filosófica, embora se traduza em todos esses planos, mas religiosa.
A expressão é equívoca, talvez o conceito de revolução espiritual fosse mais adequado, mas seria sociologicamente menos apto para descrever o fenómeno que esse Antero encarnou e o tornou, para si e para os outros, não só problemático, mas lugar de problematização do que até ele não tivera expressão consequente e, sobretudo, poder para dramatizar, em profundidade, a cena cultural portuguesa. Melhor será dizer inventar essa cena que antes dele não existia. Simples poeta, seduzido pela especulação metafísica de um século apostado em desfazer-se precisamente da metafísica; sem educação teológica particular, Antero de Quental assumiu, com uma seriedade total, primeiro aquilo que ele descreverá como ruptura com a tradição, quer dizer, com a crença tal como o Catolicismo a encarnava entre nós, desde sempre, e em seguida o projecto, ou a missão profética de substituir o que ele mesmo sabia insubstituível». In Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite Intacta, Gradiva, 2007, ISBN 978-989-616-181-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT