30-07-84
«O vento lá fora canta. Começo a adormecer. Boa noite Bachelard de ‘La poètique de l'éspace’. Boa noite meus
irmãos. Umberto Eco - Le
nom de la rose - oferta de minha irmã Ana Paula, prenda de anos.
Seiscentas e trinta páginas para ler e digerir. Urbano Tavares Rodrigues diz que toda a gente o compra, mas poucos
o lêem. Vamos a ver... Pelo lado que me compete, parece-me que o autor
encontrará um leitor atento. Esta coisa do Diário lembra-me o Torga que já vai
no décimo terceiro e que, mesmo com ele, nem tudo o que luz é ouro... Mas... adiante
com o Nocturno ao claro-morno do candeeiro de petróleo. Sete crimes
serão cometidos ao longo das seiscentas páginas de Eco, estilo romance policial com requintes medievais. E aqui estou
eu para pactuar com os criminosos, na doce paz dum leito horizontal. A
arquitectura dum romance é como a duma casa; não se faz sem alicerces. Por isso
tantas vezes se constroem casas no ar sem que se cimentem as ideias. A
estrutura é essencial; é preciso criar corpo, criar matéria, para que a forma
se sinta segura, englobante sim, mas recriativa. Há toda uma medida desmedida
que é urgente desenvolver num desabrochar da flor, num desabrochar da forma.
Mas a forma não engloba ab aeterno, antes terá de ser
flexível na passagem da flor ao fruto que engendrará novas formas.
Teremos portanto que comer o fruto, para que não caiamos na queda livre
das formas desmanteladas. Por isso o artista anda sempre preocupado e inseguro
no seu antetrabalho de pesquisa, num estado febril de encubação. O artista, para
se projectar, tem antes de se injectar, mas nada de cocaínas, claro, que isso é
perigoso e inautêntico. Será?!... Não será?!... Tudo é possível... O estilo dum
escritor cultiva-se, como as rosas a quem depressa caem as pétalas, ficando no
entanto os espinhos na lembrança, para novas sangrias. Um operário das letras
tem de trabalhar todos os dias para que seja livre, para que se liberte, com garantias
de alicerces.
31-07-84
Mas não... O castelovidense é necessariamente um feliz caldeamento do açoriano
de S. Miguel, mesurado, bravio e cantante, com o alentejano, lento, mas
a contento, de poucas falas, mas certeiro no que diz e refere. À
alegria despreocupada e saltitante do primeiro ramo junta-se a compostura
sólida dum tronco de castanheiro, bem direito e firme como madre. À bonomia
dum, junta-se a ligeireza e o não-te-rales, cantante e agudo, do outro. A
traços largos, é este o perfil do homem de Vide. A mulher acompanha-o
dando-lhe filhos e vasos de flores pela Rua
Direita do Castelo acima. Boa tarde minhas senhoras!... Boa tarde senhor comandante...
Mas que lindas flores que vocês têm... mesmo lindas... E como as senhoras as
tratam com tanto esmero!... É verdade senhor comandante, é bem verdade senhor comandante,
traga-me o senhor um vasinho que nós deitamos terra e plantamos um raminho». In
Manuel Nemésio, Construção da Casa do Ser (ou Roteiro Sentimental de Castelo de
Vide), Edições Colibri, Lisboa, 1996, ISBN 972-8288-39--5.
Cortesia de E. Colibri/JDACT