terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Era a Revolução. Júlio Conrado. «Oh, mas a moça descalça, a agitar a bandeira vermelha, à testa do cortejo, nenhum pacto prudente congeminava. Seguira-a. Horas a fio. Sem lhe dar a saber que existia. Se ela pudesse ver-se. A camaradagem dos que de ontem vieram saudá-la, outros»

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«E por cada erro de moldagem quantos indivíduos serão destruídos? Milhares. Mas nós não acreditamos em indivíduos. Acreditamos nos povos e acreditamos na História. Lembrou-se terem-lhe dito que por já não haver tiranos era preciso inventar outros. Alda, que conhecereis em breve com outro pormenor assegurara:
‘Dentro de dias, velhos tiranos serão chamados ao serviço activo. … Que tipo de velhos? Algum Salazar? - perguntara. Ela sorrira, enigmática, dando a entender que Bernardes quase fora capaz de decifrar a charada. E a Bernardes acode perguntar aos optimistas: Já sabem dos tiranos?
Os optimistas, porque o são em todas as circunstâncias, mesmo as mais difíceis, replicam sem se desconcertarem:
  • ‘Nada estamos autorizados a adiantar quanto a segredos de Estado. Porém, porque acreditamos que você é recuperável para a Causa, vamos dar-lhe uma prova da nossa boa fé, transgredindo, no espírito e na letra, os estatutos a que nos vinculámos por juramento. Receberemos todos os homens de boa vontade. Corre por aí que nos propomos ser generosos e loquazes. Nada mais falso. Seremos corteses e frios. É preciso que se saiba quem manda. Se, constatado isto, persistirem em se aliar a nós, poderemos negociar algumas peças dos arquivos. Queimar, até, uma ou outra lauda mais comprometedora. Depois de nos venderem completamente a alma, claro está’.
Alda, com certa surpresa de Bernardes, fizera a sua opção de classe: tomara o partido da reacção. Na cama, tornara-se difícil, de uma frigidez calculada, encenada.
Longe a suspeita. Mas agora. Dera em exprimir-se por monossílabos. Quase fechada. A espaços, o jorro de verbo azedo. E lá, vinha a política à baila. A princípio, Bernardes perturbara-se, nada do que ela dizia fazia sentido e era seu. Sabia-o, por ela; sabia-o, por si: julgava conhecer de um modo tão preciso tanto as suas necessidades afectivas como os seus anseios libertários que se metera a adivinhar quem a teria violentado assim. Também ele, a distância, por fim. Com alguma dor. Ela partira sem dizer que voltava. Ele compreendera muitas coisas, muita saída em falso, muita indiferença e muita repugnância, quando lhe vieram segredar que ela juntara os trapos aos do Júdice, fascista notório e machão afamado. A remota hipótese de que ela pudesse regressar perturbava-o mais do que seria admissível nas actuais circunstâncias. Poderia perdoar-lhe a experiência frustrada, mesmo os orgasmos a fornicar com o outro. Que utilizasse homens, os que quisesse, mas que não se atrevesse a implorar-lhe benevolência para com o imbecil que a deixara naquele estado. O olhar-gume. O ácido das palavras. O vinagre dos gestos. Que farrapo tinham feito dela, logo dela, que fora boa e generosa. Que ainda ontem, na revolução, esbanjava cravos pelos hesitantes do povo unido. Apesar disto, tarda em convencer-se de que não a quer de volta.

Foi nesse encontro com a solidão que descobriu as jovens em fogo pelas ruas e praças do burgo. A muitas delas chegou a dedicar excelentes monólogos. Ponde sorrisos nos lábios e aguardai os ócios da conquista; sabereis que a dor da partilha é transitória e que o medo é um sentimento ainda mais fugaz. E depois? E depois? Querereis dar-vos, já, como quem esbanja pétalas para inventar qualquer felicidade apressada. Esperai. Sede pacientes. Escutai com prudência o discurso do senso comum. E depois? E depois? Desenhai o futuro, sem agredires o monstro adormecido que em cada homem vive. Deixai-o despertar, compreender. Depois de se espreguiçar, olhará em volta, calmo, surpreso. Será dia.
Não lhe toqueis. Consenti que seja ele a procurar-vos. E depois? Triunfareis, então. Sereis donas da vida social como sois donas do laboratório vital. Oh, mas a moça descalça, a agitar a bandeira vermelha, à testa do cortejo, nenhum pacto prudente congeminava. Seguira-a. Horas a fio. Sem lhe dar a saber que existia. Se ela pudesse ver-se. A camaradagem dos que de ontem vieram saudá-la, outros. Com seus tractores, seus ancinhos, suas bocas cheias de esperança. Soldados e marinheiros entrançados em cacho nos estaminés engalanados com lindas palavras de ordem em forma de cartaz. Todos praticavam a idolatria colectiva, todos haviam esquecido a servidão, as rajadas no capim, todos tinham vindo beijar-lhe os pés como se estivesse em amanhã. E estava. Mas eram, ela, eles, tão poucos.
Perdera-a de vista na madrugada, não chegara a saber o seu nome ou em que partido militava, pois que a manifestação fora unitária». In Júlio Conrado, Era a Revolução, Editorial Notícias, Lisboa, 1997, ISBN 972-46-0859-X.

Cortesia de Editorial Notícias/JDACT