segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina A. Cunha. «… a existência de algum mal-estar entre a instituição hospitalária e a monarquia portuguesa data do início do reinado de Afonso II, tendo como motivo a posse da terra de Bouças e outra vila, que haviam sido doadas por D. Mafalda…»


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«[…] A larga faixa dominada pelos templários junto à fronteira leonesa, associada ao controle do território junto ao Tejo, até Tomar, se por um lado, permitia a preponderância dos cavaleiros portugueses na estrutura provincial da Ordem, isto é, a referida “lusitanização”, por outro, podia vir a criar problemas graves ao monarca português em caso de guerra com o reino vizinho. Afonso II confiou ao mestre templário a chefia das hostes portuguesas que participaram na batalha das Navas de Tolosa, que representou o ponto de viragem definitivo do sentido da Reconquista. Mesmo após a morte do mestre templário Gomes, na sequência de ferimentos recebidos nessa batalha, o rei continuou a depositar a maior confiança na milícia do Templo:
  • é sintomático o facto de ter sido confiado ao mestre templário, bem como ao prior do Hospital, a custódia de certos bens que deveriam ser entregues aos descendentes de Afonso II na sua maioridade.
No que respeita à implantação da Ordem do Hospital no nosso país, várias têm sido as datas apontadas É apenas de 1232 o primeiro documento que atesta de forma inequívoca a sua presença no reino, se bem que seja unânime a opinião de que esta deverá ter tido lugar em data bastante anterior. A maioria dos autores tem apontado os anos de 1126-1128 para essa instalação, ou seja, numa altura sensivelmente contemporânea da dos templários, e pouco depois da sua entrada no reino de Aragão, ocorrida em 1225. Recentemente, foi apontada a data de 1112, com base numa pública forma do século XIV, que regista a presença na diocese do Porto do mestre hospitalário Martinho servus pauperum Jherosolimitanorum. Esta data, contudo, se bem que estribada num documento autêntico, levanta algumas dúvidas relacionadas com a sua precocidade, já que, a ser verdadeira, os hospitalários teriam tido o seu primeiro estabelecimento na Península Ibérica, não em Aragão, tradicionalmente mais ligado ao mundo Mediterrâneo onde a milícia tinha a sua principal actividade, e ainda antes da bula Piae Postulatio de 1113, já referida a propósito da fundação e primórdios da Ordem. Se a data da chegada dos cavaleiros hospitalários permanece pois em dúvida, o certo é que durante o reinado de Afonso Henriques a sua presença atesta-se de uma forma determinante. Os documentos deixam entrever que numa primeira fase, e tal como acontecia em Jerusalém, os hospitalários se dedicaram essencialmente a funções assistenciais, e só a partir da década de 80 do século XII é que há provas seguras da sua participação em actividades militares como a conquista de Silves, em 1189. Em 1140, Afonso Henriques dá carta de couto ao estabelecimento hospitalário de Leça e, sete anos mais tarde, os cavaleiros recebem do mesmo rei, logo após a conquista de Santarém, a igreja de S. João de Alporão, que viria a ser o centro de uma das mais importantes comendas da Ordem em território português. Entretanto, tinham já recebido um hospital dedicado a doentes e peregrinos em Braga.
A primeira grande doação régia, de cariz militar, feita à Ordem do Hospital data apenas de 1194, altura em que a zona de Guidintesta lhes é dada por Sancho I, com a condição de aí construírem o castelo de Belver. Esta doação parece demonstrar que o rei pretendia, ou acreditava, que os hospitalários tinham então capacidade de intervenção militar e portanto de defesa do reino, tanto mais que se tratava de uma zona fronteiriça. E a fortaleza então construída terá respondido ao que lhe era solicitado, já que Belver vai ser um dos locais de depósito de parte do tesouro real em 1210.
As relações entre Sancho I e os hospitalários iam, no entanto, além das necessidades militares e de povoamento, já que é a eles que o rei confia o censo anual prometido por seu pai à Santa Sé e que foi entregue em 1198. Tal como acontecera com os templários, no período que antecedeu o reconhecimento de Portugal como reino independente, a escolha destes cavaleiros como intermediários entre Portugal e o papado não será alheia ao facto de se tratar de uma instituição internacional e ao prestígio granjeado pelos seus membros enquanto defensores dos peregrinos. A confiança do monarca encontra-se igualmente plasmada nos seus dois testamentos:
  • No primeiro, datado de 1189, o rei Sancho manda restituir aos cavaleiros, assim como aos templários, uma determinada soma de dinheiro que se encontrava em Santa Cruz e que lhes pertencia, o que terá talvez posto em causa a cordialidade as relações entre o monarca e a Ordem;
  • Em 1211, ao dispor definitivamente as suas últimas vontades, o monarca Sancho nomeia o Prior do Hospital como um dos testamenteiros régios, ao mesmo tempo que confia à Ordem uma avultada quantia em dinheiro destinada a ser distribuída pelos descendentes do monarca.
O primeiro documento que reflecte inequivocamente a existência de algum mal-estar entre a instituição hospitalária e a monarquia portuguesa data do início do reinado de Afonso II, e tem como motivo a posse da terra de Bouças e outra vila, que haviam sido doadas por D. Mafalda, filha de Sancho I, à Ordem. Esta terá recorrido à Santa Sé para fazer valer as suas pretensões, que nomeou os bispos de Astorga, Burgos e Segóvia como árbitros da questão. É possível que esta contenda esteja relacionada com a polémica que envolveu Afonso II e as suas irmãs». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

Cortesia da Faculdade de Letras do Porto/JDACT