«Pretendia até que Portugal tinha sido escolhido para cumprir a frase
bíblica: “Por toda a terra caminha o seu eco, até aos confins do mundo a sua
palavra”. Góis relembrava a Giovio que as conquistas além-mar cobriam
de glória, não apenas Portugal, mas toda a comunidade cristã, e mereciam o
apoio de todas as nações. Que melhor apoio podia haver, exclamava Góis, do que
a disposição de pagar o preço pedido pelas especiarias?
É claro que havia muitas razões para que aventureiros se lançassem à
conquista, razões essas que incluíam a ambição, associada a uma grande
crueldade, assim como simples curiosidade de religião, e um espírito genuíno de
pesquisa; essa limitação dos objectivos a razões essencialmente religiosas
diz-nos mais sobre Góis do que sobre os factos em si. Escrevendo com fervor
patriótico, preferia atribuir os motivos mais elevados às descobertas gloriosas
e ao subsequente poderio de Portugal.
João III não podia desejar melhor porta-voz. E, pois que Góis servia
tão bem os interesses portugueses, o rei, após cinco anos de serviço em
Antuérpia e nas terras circunvizinhas, mandou-o em missões especiais em 1528,
1529 e 1531. A primeira missão de Góis levou-o a Inglaterra numa altura de extrema
tensão, quando os planos de divórcio de Henrique VIII eram causa de grande
angústia e alarme entre os católicos. O rei português tinha sido sempre um
defensor da Igreja Católica mas não desejava fazer perigar a aliança entre o
seu país e a Inglaterra, sobretudo por causa da importância do Canal da Mancha
para o tráfego marítimo português para Antuérpia e para outros portos europeus.
Provavelmente queria que Góis garantisse ao rei inglês as intenções pacíficas
de Portugal, a fim de desfazer os boatos que se tinham espalhado, de que o país
iria atacar a Inglaterra por mar.
NOTA: Infelizmente não se pode provar nada ao certo sobre as
conversações de Góis na Inglaterra. O rei português desaprovava o divórcio de
Henrique VIII e é possível que Góis tivesse tratado do assunto particularmente.
A incumbência de Góis deve ter sido difícil, tranquilizar sem ofender
os católicos. A única referência que lhe fez foi para prestar tributo a seu
amigo John Wallop, que lhe fora muito útil a respeito das [suas] negociações com a
Inglaterra. Quando Góis travou conhecimento com Wallop em Portugal, o inglês
defendia a causa católica e tinha ido lutar em África lado a lado com os
soldados portugueses; mas agora Wallop era íntimo colaborador de Thomas
Cromwell, que iria em breve substituir Thomas Wolsey nas boas graças de
Henrique VIII. Góis, contudo, não parece ter achado extraordinária essa mudança
de lealdades da parte de Wallop.
É possível que Góis tenha conhecido Thomas More em Inglaterra, visto
que esse católico devoto e tolerante ainda desempenhava aí um papel de relevo;
além disso, esse piedoso humanista tinha sido hóspede frequente da Casa da Índia
em Antuérpia, poucos anos antes da ida de Góis para a Flandres. A reacção de
Góis à notícia da execução de More e de John Fisher, anos mais tarde, sugere
que ele conhecia More pessoalmente. Se assim era, devia ter sofrido ao saber
que o seu outro amigo, Wallop, tinha defendido oficialmente, na qualidade de
Embaixador em França, a decisão real de mandar executar os dois membros da
Igrej. João, filho de Thomas More, movido fosse por algum elo entre More e
Góis, fosse simplesmente pela curiosidade que o pai sentia pelos Descobrimentos
dos Portugueses, traduziu para inglês o primeiro opúsculo latino de
Gois sobre a missão do enviado etíope Mateus a Portugal. A introdução de John
fazia eco da tolerância religiosa do pai e de Góis, que advogavam uma fé
católica não dogmática.
NOTA: Sobre a tradução do opúsculo de Góis por John More, gostaria de
citar alguns passos da introdução de More porque as suas opiniões religiosas
eram extraordinariamente semelhantes às de Góis. Rogers: "Este império de
Preste João tem a reputação de ser tão poderoso como todas as restantes nações
(se não o fôr mais) que estão agora cristianizadas, excepto as terras
recentemente descobertas que se tornaram cristãs nos últimos anos. E portanto
vós, bons povos cristãos, podeis regozijar-vos grandemente, e é de razão que o
façais [...]
Embora Góis encontrasse uma certa efervescência religiosa em muitos dos
países que visitou, a situação não era sempre tão confusa como tinha sido em
Inglaterra. O rei da Polónia em 1529, Sigismundo, que estava profundamente
ligado a religião católica, tinha grandes problemas com os estudantes polacos,
muitos dos quais procuravam a sua inspiração em Wittenberg.
NOTA: Oliveira Marques, que estudou em pormenor as rotas da viagem de
Góis, deixou em aberto o problema da partida de Góis por mar ou por terra, ao
sair de Portugal. Depois de cumprida a missão, Góis regressou via Danzig; parece-nos
muito provável que tenha voltado de barco.
Também vários nobres, como Joannes Tarnowski, que Góis tinha conhecido
em Portugal e que o festejou na Polónia, eram influenciados pelos protestantes.
Contudo, a missão de Góis nesse país consistia em discutir a possibilidade dum
laço dinástico entre a Polónia e Portugal, e não envolvia nem questões
religiosas nem questões essencialmente políticas. Os interesses económicos de
João III no Oriente tornavam altamente desejável o casamento entre o seu irmão
Luís e Hedwig, filha do primeiro casamento de Sigismundo. Góis, convidado ao castelo da princesa, pôde ver por si próprio que
a proposta noiva era discreta e bem-parecida. Tinha a
certeza de que seria bem-sucedido na sua missão. Em conversações com vários
cidadãos polacos tinha vindo a saber que a segunda mulher de Sigismundo, Bona,
de origem italiana,
não era benquista, e que o único filho que ela tinha do rei era uma figura
impopular. Góis escreveu a
João III que Luís teria boas probabilidades de vir a ser rei da Polónia, a monarquia polaca era electiva, se se
combinasse o casamento. Contudo, por mais útil que a união pudesse vir a ser
para Portugal, não foi aprovada por Sigismundo. Góis voltou à Polónia em 1531, mas uma segunda tentativa para unir
os dois países por um laço dinástico também fracassou». In Elisabeth Feist Hirsch, Damião
de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1967.
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