Retratos vivos
«A Bíblia permite-nos compreender a história dos antigos Hebreus, a
escravatura a que estiveram sujeitos no Egipto, a deportação que os manteve
prisioneiros dentro das muralhas da Babilónia, o édito de Ciro que os libertou,
a língua que foram esquecendo, os cabelos cortados de Sansão e a sua força
aniquilada pela faca de uma mulher, Saul saciado com o corpo e o canto de um
adolescente, Judite segurando pelos cabelos a cabeça cortada de um general,
Onan derramando o seu sémen na areia e gemendo de alegria na sua solidão.
O que corresponde ao que a Tora foi para o mundo dos antigos
Hebreus e permite descobrir o sentido da maior parte das imagens esculpidas ou
pintadas durante a Idade Média na Europa é a colectânea de lendas redigida pelo
dominicano Jacques de Voragine, entre 1258 e 1263, a Legenda Aurea, colectânea dos nimbos de ouro que inclui
todas as histórias referentes aos mártires, santos, eremitas, padres do
deserto, fundadores de conventos e padres da Igreja.
No mundo dos antigos japoneses, o que corresponde à lenda dourada é o Konjaku. Foi em 1844 que
se descobriram as mil histórias do Konjaku monogatari. Os eruditos afirmaram
que teria sido Minamoto no Takakuni, grande referendário de Uji, quem teria
registado essas mil e uma histórias no Verão do ano 1071, em frente do rio de
Uji, por ocasião dos grandes calores.
Tal hipótese foi posta de lado e não foi substituída por mais nenhuma,
pelo que todas essas maravilhas foram atribuídas a ninguém. O que, para o mundo
grego, em inícios do século II, teria correspondido com mais precisão à obra de
Minamoto no Takakuni seriam as obras
de Plutarco.
O que, para o mundo francês do século XVII, corresponderia a Plutarco seria Tallemant.
A quem se teria de acrescentar Saint-Simon. O que, para o mundo romano,
correspondia a Tallemant era Suetónio. A quem os Romanos gostavam
de acrescentar Tácito.
É minha intenção reflectir sobre duas histórias do Konjaku:
- a sétima história do XXII rolo,
- a quarta história do XXX rolo.
O que me interessa na confrontação dessas duas histórias,
excelentemente traduzidas por Dominique
Lavigne-Kurihara, é este aspecto paradoxal: o que os humanos mais amam não é susceptível de ser reconhecido.
O que reina é sempre o que se perdeu.
O que devora o homem é sempre o amor que sentiu quando ignorava a sua
natureza. Esse amor é irreconhecível porque está imbuído de um mundo cujo
reinado teve lugar antes da desunião do nascimento. Laço de antes da linguagem
adquirida nos lábios daquela que deixa de estar unida e que já é a mãe que
desfaz o laço. Unidade que diverge no acesso à luz para o olhar e pela
transformação do corpo devida ao ar que se respira. Olhos que vêm e voz que
clama dilacerando-se, dividindo a alma, destruindo a ressonância antiga, obscura.
O que já ocorreu é sempre esse desaparecimento impossível de conhecer, esse
mundo engolido nos confins da vulva daquelas que nos fizeram crescer, e que
regressa, com o seu silêncio característico, chamo silêncio à linguagem-que-já-não-é-órgão-de-nada,
aquando das depressões nervosas, acelerando o ritmo cardíaco, angustiando a garganta,
começando por fascinar os olhos e só depois a visão, sonhando. Dominando,
animando, transportando, enlaçando e, por fim, matando os amantes». In Pascal
Quignard, Histoiresd’Amour du Temps Jadis, Editiones Philippe Picquier, Arles,
1998, Histórias de Amor de Outros Tempos, Retratos Vivos, tradução de Maria
Vilar Figueiredo, Edições Cotovia, Lisboa, 2002, ISBN 972-795-043-4.
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