quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Anacronista. Crónicas. Manuel António Pina. «E quem nos responderá quando, diante do nosso rosto no espelho, nos virmos e não nos reconhecermos, ou quando, nos dias de infelicidade, chamarmos pelo nosso nome? E, todavia, é tão difícil imaginar que alguns dos homens de sucesso com quem nos cruzamos na rua (…) tenham sido alguma vez crianças!»

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«Diz-se revolução, ensinam os dicionários burgueses, o movimento de um corpo que, descrevendo uma curva fechada, passa sucessivamente pelos mesmos lugares; os revolucionários de há 20 anos descobriram, pelo menos na Europa, que os dicionários sabem mais de revoluções do que o livrinho vermelho das citações. Continuam (continuamos) tão razoáveis como dantes; só que já não exigimos o impossível, mas tão só deixarmos de ser pobres e, se não for pedir muito, sermos ricos, ou podermos ostentar look em conformidade: o BMW (ou, ao menos, o Rover), o American Express (ou, ao menos, o Visa), a casa de praia (nem que seja em time sharing), o fato Pestana & Brito (na pior das hipóteses da Alfaiataria Ayres), as acções da SONAE (ou, vá lá, da PROADEC).
Burgueses éramos, já então, todos, ou ainda menos, como Cesariny solitariamente explicava em pleno consulado neo-realista. Hoje continuamos a ser burgueses, mas já não vemos, afinal, mal nenhum nisso. O compromisso político foi substituído pela chamada transgressão estética e já ninguém deixa de ir ao S. Carlos por causa do smoking. Todos queremos ser burgueses e os poucos corações proletários não são poupados pelas prosas convertidas de Pacheco Pereira e de Vilaverde Cabral.
Estes tempos são tempos de arrependidos de todos os géneros:
  • Bob Dylan está cheio de dinheiro e usa lentes de contacto;
  • Regis Debray estuda Milton Friedman às escondidas. Não transformámos o mundo nem mudámos a vida;
  • A vida é que nos mudou a todos (o Che morreu na Bolívia, baleado por um ranger anónimo);
  • José Afonso morreu de doença;
  • O Artur Queirós ganhou o Prémio Ibéria de Jornalismo.
Foi uma derrota sem glória, pelo menos sem tanta glória como a denota dos nossos pais nas trincheiras de Valência, nos campos de Almeria, ou passando o Ebro en un barquito de vela. Os revolucionários, mesmo os de café, são os corn…. da História; nós nem por isso. Os cafés passaram a bancos e as namoradas com quem, de mãos dadas, atravessámos os anos da brasa, sobre as barricadas do Quartier Latin ou nos jardins da Cidade Universitária, são hoje (ou já foram, jdact) professoras do liceu e assinantes do Círculo de Leitores. Restam-nos alguns discos, alguns livros, algumas memórias. E nem temos uma história, uma grande história, para contar aos filhos, porque os nossos filhos preferem as histórias dos campeões da Wall Street e emocionam-se mais com um crash da Bolsa do que com verduras românticas com pavés, slogans, ocupações selvagens. Elvis Presley, afinal, não era informador da CLA? João XXIII não tinha acções nas fábricas de material de guerra? Giap não tinha campos de concentração? Fidel não tinha Padilla a apodrecer numa cadeia? In Jornal de Notícias, 5/3/88.


Contra os Economistas
A infância é um lugar de exílio. Se não tivermos, em qualquer sítio do coração, uma infância, onde nos refugiaremos quando os ladrões vierem para nos roubar a inocência e os sonhos e quando os assassinos baterem à porta? Se não tivermos uma pequena infância que seja (um jardim longínquo, um vago quarto de dormir perdido), onde guardaremos os segredos mais secretos e onde brincaremos ainda? E quem nos responderá quando, diante do nosso rosto no espelho, nos virmos e não nos reconhecermos, ou quando, nos dias de infelicidade, chamarmos pelo nosso nome?
E, todavia, é tão difícil imaginar que alguns dos homens de sucesso com quem nos cruzamos na rua ou com quem convivemos na TV e nas colunas sociais tenham sido alguma vez crianças! Mesmo quando as revistas os mostram de bibe, em desvanecidas fotografias, posando compostamente em melancólicos estúdios e fitando desamparados a câmara, metidos em fatos inimagináveis, custa a crer que sejam eles, ou que alguma vez o tenham sido, e que esses pequenos seres transidos tenham podido resistir à fastidiosa seriedade com que venceram naquilo a que eles hoje chamam vida.

As estatísticas não falam disso, mas na nossa sociedade há uma enorme e perigosa carência de infância. Nos homens, nas instituições, na vida de todos os dias. E uma enorme carência de sonhos e de coisas verdadeiramente grandes, razões ou desejos. Os sonhos, que pertencem a uma frágil e excessiva espécie, foram as principais vítimas da mortandade liberal dos últimos anos, substituídos por monstros gélidos chamados planos, programas, projectos. (Que coração, de homem ou de sociedade, sobreviverá alimentando-se, não do desmesurado sangue dos sonhos, mas de programas e de projectos?)» In Manuel António Pina, O Anacronista, Crónicas, Edições Afrontamento, 1994, ISBN 972-36-0323-3.

continua
Cortesia de E. Afrontamento/JDACT