Literatura, teoria e
cultura
Argumento
«Por esta razão, o programa
crítico a convocar deverá ser capaz de fazer a mediação entre interpretações
retoricistas e interpretações contextualistas, entre modalidades de leitura
demasiado entrincheiradas na auto-referencialidade da linguagem, como as
praticadas pelo imanentismo crítico de tipo jakobsoniano, e a adopção de um
contextualismo linear. Uma afirmação eloquente de José Guilherme Merquior
explicita o regime de leitura que se deseja implicar no período em causa. Ao
comentar o projecto estruturalista de Lévi-Strauss, num pequeno volume
monográfico, este notável crítico brasileiro lembrava que a mimese tem de passar pelo signo.
Desta forma:
- Não se elide o vínculo mimético e identitário da escrita de Setecentos, pois essa sua vinculação foi contígua à intensificação e/ou instrumentalização dos usos sociais das letras neste período;
- Consideram-se também os aspectos linguísticos e formais, próprios de uma época que assistiu à revivescência da retórica clássica e à codificação da expressão poético-literária.
O próprio facto de
aquilo a que chamamos literatura não possuir, nem sequer no incipiente discurso
crítico de então, a autonomia estética que a modernidade lhe reconheceu,
emergindo no conjunto da matéria escrita sob diversas configurações e
intensidades, coloca a gestão crítica da relação entre a mimese e o signo em
três planos sucessivos:
- No âmbito da inflação teórica ocorrida nas décadas de sessenta e setenta, quando a fundamentação linguística e estrutural de parte da crítica reprimiu a apetência fundacional da teoria para integrar questões de natureza interdisciplinar, cultural e não-literária;
- No plano da textualização da cultura e da culturalização da literatura, centrada nas décadas de oitenta e de noventa, período que inflaciona a autoridade referencial e identitária dos textos literários, à custa de uma acentuada restrição formal;
- No âmbito de um regime de leitura intensiva, duplamente informada pelos trabalhos da teoria e do culturalismo, que sumariamente confirmarei como o legado mais enfático das guerras em torno da crítica ao longo das últimas décadas.
Após uma breve passagem
pelas questões levantadas em cada uma das alíneas, assumirei a crítica como inscrição, desde logo, inscrição
da textualidade na temporalidade, inscrição da metromania no círculo contextual
setecentista e ainda inscrição da poesia no processo de liricização da Poesia e não apenas no regime literário pós-romântico.
A viabilidade setecentista de uma leitura simultaneamente atenta às questões da
mimese e do signo, sendo menos susceptível de reconduzir o discurso ao facciosismo
formalista ou ao facciosismo culturalista, é criticamente potenciada pela referida
conexão entre o capital cultural e o capital social.
NOTA: O conceito de capital
cultural originou-se na sociologia de Bourdieu, particularmente nos
seus trabalhos dedicados às estratégias de distinção cultural. Ensaios como os
de Guillory, 1993, e de John Frow, 1995, contribuíram a seu tempo para a sua
divulgação e consagração teórico-crítica.
A pluralidade das letras
e a contiguidade que se estabelece entre o que poderemos chamar o arquivo real
e o arquivo ficcional no século XVIII, constituem marcas epocológicas que têm consequências sérias no plano do discurso
crítico. Ainda quando explicitamente assume a sublimação pastoril, o verso
árcade solicita uma leitura que é constantemente atraída para territórios
referenciais que transcendem a matéria que a constitui enquanto linguagem ou
ficção. Deste modo, o desafio que a textualidade de Setecentos lança ao leitor
contemporâneo passa menos pela imposição de uma crítica autoritária, indexada a
um conceito moderno e/ou estritamente autotélico
de literatura, do que pela abertura a uma crítica disponível para a inscrição do teor
compósito das letras da época em causa». In Fernando Matos Oliveira, Poesia e Metromania, Inscrições
Setecentistas, 1750-1820, Dissertação de Doutoramento em Letras, na área de
Línguas e Literaturas Modernas, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra,
2008.
Cortesia da Universidade
de Coimbra/JDACT